Os figos de Cascais

O ser humano é capaz de tudo. Por amor, é capaz dos maiores sacrifícios, é abnegado, sofrido e em casos mais estremos, dar a própria vida por uma causa ou pessoa. Porém, também é capaz dos maiores horrores, utilizando a inteligência para causar os maiores danos ao seu semelhante. O caso da inquisição em que extraiam as confissões de uma forma que era raro o pobre escapar, indo parar à fogueira através dos absurdos autos-de-fé.

Serve este pequeno intróito para exemplificar até onde pode ir o ódio ou a vingança.

Morava perto do segundo Marquês de Cascais, um judeu rico, proprietário de uma quinta com figueiras. Por saber que estar nas boas graças do Marquês lhe seria proveitoso, o judeu passou a enviar todos os dias antes do almoço numa bandeja, os mais bonitos figos das suas figueiras. Embora o Marquês também tivesse figueiras, apreciava de sobremaneira aquela atenção do vizinho judeu, quer pela cuidado e deferência do hebreu ao presenteá-lo numa bandeja em ouro, quer pela qualidade dos figos que tinham um odor que lhe abria o apetite.

O marquês, logo ao outro dia se prontificou em agradecer a gentileza do judeu e realçando-lhe a elegância.

Lisonjeava-o a delicada lembrança do vizinho, que para enviar o presente mandara fazer de propósito a bandeja de ouro. Era como se o significado fosse que os figos destinados ao estômago de sua excelência, não podiam ter contacto com outro metal que não fosse o de maior valor e estimação.

Mas o judeu não perdera, apesar das atenções que o marquês lhe dispensava, o ódio de raça atiçado pelo facciosismo religioso, que desde D. Manuel I, lavrava fundo entre os Judeus perseguidos.

Por se vingar os seus irmãos de Israel, queimados nos autos de fé, o judeu lembrou-se de passar os figos, no primeiro dia em que os mandou, pelo imundo olho da rabadilha.

O marquês questionava-se sobre a qualidade de tais figos. Amigo do conhecimento, acabou por consultar um livro da sua biblioteca sobre frutos, em que o autor garantia que os figos não tinham cheiro. Perante tal absurdo, o marquês exclamou: «Oh santa ignorância! Como é possível, alguém escrever semelhante disparate. Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão».

Por sorte do destino, a Inquisição prendeu o judeu, acusado de um crime bem menor que a fricção dos figos no rabo, e instaurou-lhe um processo.

Ia o marquês intervir em favor do seu vizinho israelita, como testemunha abonatória, quando um criado do preso, maldoso e vingativo, temendo ser apertado com perguntas que o poderiam perder, denunciou aos inquisidores o caso dos figos.

O tribunal horrorizou-se com tamanha judiaria, praticada contra um piedoso e nobilíssimo fidalgo português.

Mas o marquês, que sabia o que eram criados, não acreditou na denuncia, confiando mais na finura do seu olfacto do que no depoimento do denunciante.

Segundo o estilo da corte, o marquês de Cascais acompanhou o rei ao edificante espectáculo do auto-de-fé.

Se não tivesse que assistir por obrigação de classe, teria ido para mostrar ao hebreu, com a sua presença, que não dava maior crédito à história dos figos.

Na igreja de S. Domingos, o marquês chegou-se à beira do judeu, que de carocha (Espécie de chapéu cónico muito alto) e sambenito (Hábito, que se enfiava pela cabeça em forma de saco) aguardava resoluto o terrível momento de começar a arder, e perguntou-lhe:

«Ó velhaco, tu fizeste aquilo dos figos?»

E o judeu respondeu com cínica firmeza:

«Fiz, senhor marquês. Como vossa excelência os achou bons da primeira vez que me lembrei de perfuma-los assim, julguei que para maior deleite de vossa excelência devia continuar a passa-los pelo mesmo sitio, antes que vossa excelência os comesse.

A lição a tirar deste caso verídico, é que devemos ter todo cuidado com certos odores, muito embora a inquisição já não exista, podem no entanto nos provocar dissabores.

Lorde
Enviado por Lorde em 28/03/2013
Reeditado em 28/03/2013
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