Hirsuto entre as cobertas
Esse causo aconteceu com a Dona Edite casada com o tal de Victor Hugo.
O dito era pedante, perdulário e impossível, transformou a vida da mulher num inferno psicológico e numa prisão tenebrosa. Naquela época, o divórcio não era possível, tanto que a separação nem passava pela cabeça da esposa.
Quando morreu de tanto beber naquela noite no bar da Dona Luiza, levou tudo consigo. Para as graças da mulher.
Quando a Edite soube da morte do peçonhento, ficou estática como num sonho. Pediu mais de mil vezes se era verdade e não acreditando em nenhuma das vezes que lhe contaram, foi até o bar para ver com os próprios olhos e com os nervos em frangalhos. Não soube o que fazer naquele momento. Estava tão feliz e livre do Victor Hugo que abandonou o corpo do morto ali mesmo na estrada e foi para a casa que agora era sua. Começou abrindo portas e janelas, ergueu as cadeiras, soltou o cachorro e passou a limpar freneticamente a casa. E o povo a esperar pelo enterro.
O morto ficou ao ar livre, largado no meio do pó, porque ao pó haveria de retornar e nada da mulher aparecer. Por fim, o Padre Dimas mandou que a chamassem para dar início às exéquias.
Acontece que a morte se deu enquanto era noite fresca e ninguém imaginaria que não houvesse um velório imediatamente após o passamento do infeliz e foi quando a catinga tomou conta da cidade que ninguém mais se atreveu a encostar um dedo no morto. A Dona Edite que olhava tudo impavidamente resolveu tomar as providências muito a contra gosto.
Pegou a carroça do vizinho, dois cobertores de casal, pediu ajuda aos transeuntes e levou o maldito sem ninguém saber onde; sem as rezas de fim de vida, sem velas e sem choro.
Só ela em cima da carroça, num galope de asno que parecia um passeio de namorados, ela e o marido hirsuto. A única diferença era que as rédeas tinham trocado de mãos.
Soltou os cabelos e a guia e resolveu entrar num mato que tinha atrás do cemitério. Largou o corpo de chofre e partiu.
Um velho que morava nas cercanias da desova, viu tudo e resolveu enterrar o pobre diabo, deixando as cobertas dobradas e arrumadas. Daria destino a elas e avisaria o delegado depois, se lembrasse. Cansado da lida, esqueceu-se delas e do delegado.
No dia seguinte, quando acordou sóbria daquele funesto, deu-se conta de que nada lhe faltava, tampouco o ar quente da manhã. Um arrepio passou pelo seu corpo e resolveu que daria uma última olhada no ex-marido e pensando melhor o enterraria num caixão. Tudo bem certinho, como manda o figurino e para não lhe pesar a consciência.
Foi a pé analisando cada hora passada ao lado do Victor Hugo e a cada passo que dava maior era a sensação de alívio.
Quando chegou ao lugar encontrou as cobertas dobradas, como era o hábito do falecido e o corpo tinha desaparecido. Ficou apavorada e uma taquicardia lhe podou os movimentos e o pensamento.
Era vivo o Victor Hugo?
A essa ideia, a visão turvou e sentiu a dormência anterior ao desmaio. Recuperou-se bravamente e torcendo as mãos começou a olhar ao redor, esperando que a qualquer momento aparecesse o homem pelo meio do mato rindo sarcasticamente e batendo palmas.
Correu sem direção e não soube como chegou a casa e parando abruptamente na soleira da porta questionou como é que tudo estava aberto se o Victor Hugo não gostava daquilo.
Louca, tratou de fechar tudo e de manter tudo no mesmo lugar de antes e sentou desesperada numa cadeira em frente à porta a esperar o marido que haveria de chegar sem demora.
Muitas coisas fúnebres passaram pela cabeça da Dona Edite que inconscientemente começou a balançar-se com as costas na cadeira e a torcer as mãos.
Foi encontrada morta uma semana depois pelos vizinhos preocupados com o claustro e disseram irresponsavelmente a todos que o passamento deu-se pela saudosa e sofrida falta que ela sentia do marido.