Gratidão Eterna

Gratidão Eterna

Outubro de 1964, Samira repara que a mãe do coleguinha dos seus filhos que freqüentam o Jardim de Infância não tem levado o filho mais velho a escola.

Preocupada ela vai visitar Vera Lúcia. Assusta-se diante do quadro fatal que encontra a jovem mãe. Nordestina, vivendo com um tenente da marinha, com três filhos, de quatro, dois anos e meio e uma menina que acabara de completar um ano, ela ajudava a sustentar a família lavando roupa para fora. No desespero de encontrar-se grávida pela quarta vez, resolve procurar uma “curiosa”, que lhe deixa uma seqüela irreversível. O feto dentro de seu útero apodreceu. E a “curiosa”, só lhe ensinou uns “chás” com antitérmico. Quinze dias se passaram. Sem coragem para contar para os sogros com os quais residia, estava enfrentando a “doença”. Para Samira que lhe perguntou séria o que estava acontecendo, vendo-a definhar tão rapidamente resolveu contar o que tinha feito.

Samira a levou a um ginecologista que ainda tentou amenizar a situação com algumas injeções de antibiótico, mas sem muitas esperanças. Samira também ajudou a hospitalizá-la. O marido que acabara de chegar da viagem não sabia de nada. Foi apanhado de surpresa com a notícia. Ela foi internada e ficou no hospital, ardendo em febre, com infecção generalizada.

Um dia após sua internação, Samira que era “sensitiva”, sentiu o aviso e pediu ao marido de Vera que fosse vê-la no hospital. Lá chegando ele ainda teve tempo de assistir sua companheira em seus últimos momentos. Ficava viúvo com três filhos para criar e educar. Samira lamentou profundamente a morte da lavadeira nordestina tão bonita, e cheia de vida e as três crianças órfãs. Chorou muito triste, sentindo-se impotente diante da realidade. Naquela época, há mais de quarenta anos as mulheres enfrentavam uma agonia terrível, desespero singular, e tentavam de qualquer forma se livrar do “problema”, principalmente por não ser casada, morando com os sogros, e já tendo três filhos pequenos.

O tempo passou rapidamente. 1º de Janeiro de 1968, Samira, estava na Praça Tiradentes, com sua mãe e seus três filhinhos, desesperada, ela lutava contra a morte, de repente, começara a sentir-se mal. Tinha acabado de descer do carro do cunhado que lhe tinha dado uma carona até o ponto final do ônibus 355 Tiradentes/Madureira, que a levaria para casa. Começou a tossir, de repente as pernas falharam, começou a ver tudo piscando rapidamente, uma falta de ar, e uma enorme dor de cabeça. Foi se segurando nas pessoas, amparada por sua velha mãe, desesperada, sem saber o que fazer, gritou para o Fernandinho o seu filho mais velho, corre, procura, um táxi, pois tenho que ir para o hospital que é aqui pertinho, não consigo mais andar. Noite de reveillon, uma e pouco da madrugada, alguns fogos ainda irrompiam na noite carioca. Samira estava agonizando, quando o filho fez sinal para um táxi que acabava de estacionar. Na pressa ele nem reparou que descia do táxi, o marido da finada Vera Lúcia, que estava com a segunda esposa descendo do táxi. Na mesma hora viu o quadro desesperador de Samira, jogou as crianças dentro do fusca e a mãe de Samira e também deu uma nota de dois cruzeiros e falou para o motorista, salve minha vizinha, leve-a para o Sousa Aguiar. Não posso ir junto, pois no carro não dá.

Madrugada triste para os familiares de Samira, desde que ela entrara no hospital não tinha notícias. Amanheceu a velha mãe estava desesperada, até que o ascensorista trouxe notícias de Samira. Duas horas depois, Samira teve alta e pode ir para casa. Pegou o ônibus com sua mãe e seus filhos e chegou a casa. Não conseguia se esquecer da estranha coincidência, do táxi ter estacionado bem ali onde ela agonizava. Os médicos identificaram uma crise de hipertensão emocional e recomendaram que ela passasse a fazer tratamento com cardiologista.

Samira hoje tem setenta anos e não esquece a “Gratidão Eterna”, de sua vizinha Vera, que na hora de seu “sufoco”, encaminhou aquele táxi, que a ajudou a salvar-se, pois segundo os médicos, a crise de hipertensão poderia ter sido fatal, se não tivesse sido medicada com urgência no hospital. Soube no momento que o táxi chegou que a vizinha lá do outro lado lhe agradecia com aquele grande favor especial, mandando-lhe o táxi e o dinheiro para pagar a “corrida”. Samira fizera tudo para ajudar a vizinha em sua agonia, testemunhara suas dores, sua angústia, seu desespero. Só não pode livrá-la da fatalidade do “aborto” provocado e não concluído. Vera do outro lado agradeceu num gesto decisivo para a salvação da vida de Samira.