Pai

De todas as feridas que traz na alma, existe uma - apenas uma - que de vez em quando ainda sangra. As outras - talvez nem sejam tantas - já cicatrizaram tão bem que lhe ajudam a compor o caráter e equilibrar o temperamento. Usando as palavras, como se linha e agulha fossem, ela tenta suturar a ferida que neste momento encontra-se aberta. Esta ferida tem um nome curto, apenas três letras, mas é tão profunda que pode lhe causar hemorragia... A ferida chama-se Pai...

Tudo bem que ele refizesse sua vida e tivesse outros filhos... Tudo bem que ele não pudesse - ou não quisesse - colaborar financeiramente... Tudo bem que ele lhe tirasse a casa... O mundo material não era o mais importante, além do mais a falta deste tipo de apoio fez com que ela aprendesse a caminhar com as próprias pernas... Tudo bem que não comungassem dos mesmos ideais... Tudo bem que ele não fosse visitá-la... Ela só queria estar perto e contentava-se com migalhas de afeto...

Há dezessete anos, ela era uma menina metida a revolucionária e poeta. Foi trabalhar com o pai, num centro de adaptação de lentes de contato. A ideia era que trabalhasse apenas durante as férias da faculdade, pois considerava a atividade muito técnica e muito comercial. Ela queria trabalhar com gente, acreditava que poderia mudar o mundo e que o caminho da mudança era a educação, por isso cursava pedagogia. Acabou percebendo que trabalhar com a visão era também poder olhar de perto para as pessoas, e que para mudar o mundo poderia começar pela transformação do olhar...

Para além de toda essa percepção, estar ali naquele meio era estar perto do pai, o homem que ela ainda acreditava merecer o título de heroi.

Quando resolveu aprofundar-se nos estudos e mergulhar no universo das lentes, ele disse que não poderia acompanhá-la... Quem ficou ao seu lado foi a mãe... Mesmo assim ela não desistia de estar perto dele...

Formada em Optometria, enfrentando uma briga ferrenha com os oftalmologistas, lutando para trabalhar, trabalhando com afinco, conquistando espaços entre os integrantes do ramo, ela já estava acostumada a manter com ele uma relação de parente distante... Um dia ele resolveu sondá-la, chegou até a propor parceria... A filha, já não mais tão menina, animou-se, viu novamente a oportunidade de estar perto do pai... Finalmente ele estava reconhecendo seu trabalho, seu valor...

Para seu grande espanto, de repente, descobriu que aquela proposta já não existia, que aquela parceria já estava acontecendo e não era sua... O pai aliou-se a uma oftalmologista... Porta fechada, ferida aberta... Sangrando... O que se pode esperar de um pai que nunca foi pai? A menina-mulher já não quer mais esperar de quem não pode dar afeto... E segue o rumo carregando os mesmos ideiais poéticos e revolucionários de outrora... Talvez ela não possa mudar o pai, mas quem sabe se mudar o mundo - através do olhar e da poesia - a alma não cicatriza um dia?