A reunião
Esse causo aconteceu há muitos anos atrás, quando ainda apareciam na Campina os caboclos fugidos e os soldados desertores da Guerra dos Pelados.
Era um tempo de miséria humana, onde o banditismo era a própria lei; e esses fugidos ou continuavam fugindo ou assentavam domicílio pela região mais apartada possível da guerra.
Conta o Amâncio – caboclo fugido e assentado na Campina – que, quando estava na Missa das oito do Frei Gaspar, ele escutou uma conversa de muitas gentes e olhou para trás na tentativa vã de enxergar quem era e o porquê do rebuliço e constatou que não era dentro da igreja e sim fora.
Surpreendeu-se ao saber que somente ele ouviu as conversas.
Esperou o Frei terminar e quando saiu escutou que o som das vozes vinha dos fundos da igreja, de modo que teria que dar a volta para saber o que era. Quando chegou lá, encontrou uma grande mesa posta com uma toalha branca e muita comida. No lugar de cadeiras, havia bancos. Deveria acontecer um grande banquete, pois as pessoas que deveriam estar sentadas lá ainda não haviam chegado, mas deveriam estar por perto, pois escutava a conversa vinda de algum lugar por ali.
Amâncio postou-se meio que escondido entre as árvores que tinha por ali, e como era noite, dificilmente seria visto. Tinha um lampião pendurado na parede da igreja que iluminava um pouco, mas dava para ver só a mesa e mais nada.
E assim foram chegando um a um e sentavam-se nos lugares que lhes eram cabidos e certos. Não se cumprimentaram, mas após sentarem-se entabulavam conversas que Amâncio não pôde compreender naquele momento. Eram pessoas sofridas e tinham no semblante o fulgor da viagem que haviam empreendido até ali.
Amâncio achou que eram padres de outras paróquias vindo a cumprimentar o Frei Gaspar por alguma coisa, mas então viu na cinta de um deles um facão de pau de guamirim esculpido em fogo. Eram jagunços rebeldes. Amâncio se abaixou assustado.
Mas o que estariam fazendo ali, atrás da igreja? E onde estava o Frei Gaspar?
Foi então que o Amâncio escutou algumas coisas das conversas e que diziam estar esperando o trem para levarem os feridos, que o exército de São Sebastião estava por vir, a vitória era certa e lamentavam profundamente a morte de alguém, alguém tido como santo entre eles. Iriam fazer outra viagem, dessa vez de retorno. Falaram em rios e em trens novamente. Não tocavam na comida e tampouco bebiam alguma coisa e não havia mais nada na mesa. E foi quando Amâncio escutou que estavam esperando o Deodato, que quase desmaiou de pavor.
O Deodato – Amâncio lembrava bem – morreu de tiro depois de uma perseguição sem trégua por oito meses a fio e foi só quando capturaram o dito que deram a guerra por terminada. Como é que poderiam esperar por um homem morto?
Amâncio resolveu se abaixar mais ainda. Já estava apavorado demais para correr dali e curioso demais para deixar de dar uma última espiada naquele homem que fora líder na guerra em que participara. Baixou a cabeça e esperou.
Lembrou-se de tudo o quanto tinha acontecido naqueles anos de barbárie e se arrependeu amargamente de ter lutado e de ter fugido. Via os incêndios, as mortes, os levantes; sentiu de novo a ânsia do arrependimento e fugiu.
No dia seguinte, resolveu procurar o padre e contar tudo, inclusive em confissão contou seu verdadeiro nome e todos os seus pecados. O padre pegou na mão de Amâncio e levou-o para os fundos da igreja e mostrou que tudo aquilo não havia passado de alucinação.
Amâncio quis ficar sozinho naquele lugar onde havia tido uma reunião de caboclos rebeldes na noite anterior para despedir-se do seu passado, e foi quando deu a meia volta para sair de lá que encontrou no meio das árvores onde estivera escondido, aquele facão de madeira que ele tinha visto na cinta do jagunço.