A BANDA DE UM PORCO
Uma gargalhada marota e paterna quebrou o silencio da capela do convento quando Irmã Florzinha confessou seu pecado contra a pobreza. Pe Julinho não se conteve ao ouvir pesarosa a pobre irmãzinha confessar sua travessura digna da condenação de impedimento à comunhão imposta por sua superiora.
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Era década de 50 quando em Monjolo a Santa Casa de Misericórdia passava por grandes dificuldades financeiras. As irmãs que zelavam pelo hospital faziam das tripas coração para atender os doentes e a comunidade. Não era falta apenas de recursos médicos, aparelhos ou medicamentos. A própria comida era racionada.
Na cozinha Irmã Florzinha fazia o que podia para atenuar a escassez e fazer bem feito suas tarefas de noviça e cozinheira. Sozinha na cozinha no mais das vezes nem era muito supervisionada por suas superioras ou mestras, vista a demanda de trabalho no hospital e a pequeno efetivo de irmãs.
Fim de ano certo fazendeiro tinha por costume caritativo doar uma banda de porco para alguma instituição de caridade. Um de seus capatazes lembrou-se da Santa Casa e foi a te cozinha do hospital onde encontrou Florzinha. Interrogada se teria interesse em receber a banda do porco. Uma imensa alegria invadiu-lhe a alma que a mesma começou a dançar de alegria tomando as mãos do arauto da banda de porco, vibrou com ele pulando e balançando em roda. Só não o beijou por conter-se visto sua posição sócio-religiosa.
Foi festa no convento e na Santa Casa. Aquela doação abrandaria por um tempo os augures da escassez. Irmã Florzinha recebeu com alegria a nobre doação. Preparou-o a contento. Fritou as carnes e a costelinha guardando-as em latas na banha do porco para conservar. Salgou o toucinho e preparou as peles com sal expondo-as por sobre o fogão de lenha para torrá-las em tempo oportuno. O pernil uma das partes mais nobres e generosa de carne foi guardada para um momento especial. Deu trabalho toda preparação, mas a alegria do presente não deixou a canseira aparecer.
Os dias que sucederam foram de bonança e alegria à mesa. Num desses dias de preparação alegre das refeições do hospital notou Irmã Florzinha certo mau cheiro no ambiente da cozinha. Não tardou e percebeu que era advindo das peles que secavam sobre o calor do fogão em varal estendido para esse fim. Pelo que se percebia, a pouca experiência em preparar peles dosando a salmoura de modo ineficiente, levaram a pele a se perder ficando imprópria para o consumo.
Nos fundos da Santa Casa havia longo terreno com mata ainda virgem em determinados pontos e da cozinha se tinha acesso a tal espaço devoluto. Irmã Florzinha não teve dúvidas. Alimento perdido não deve ser consumido. Atirou o mais longe que sua força permitiu as peles perdidas que desapareceram no meio do mato levando com elas o mau cheiro que empesteava a cozinha.
Por essas razões que desconhecemos na mesma semana quis a Madre Superiora Martírios dar uma revista no terreno dos fundos da Santa Casa. Em companhia do Sr. Antônio provedor voluntário do Hospital saiu numa manhã em supervisão dos arredores pertencentes à Casa. E foi nessa empreitada que voltou a Madre a cuspir marimbondos e Sr. Antônio com as peles rejeitadas da dispensa em mãos, fedendo e exalando moscas. _Quem cometeu tal infâmia? Gritou para o convento inteiro ouvir.
Sua consciência escrupulosa não podia deixar tal acontecimento passar em branco. Descoberto que a façanha era coisa da Noviça Florzinha, a Madre Martírios espinafrou-a com todos os sermões que lhe coube dar. Tomou como base as escrituras sagradas, as regras da ordem ditadas pela fundadora e o conselho evangélico da pobreza cujo desagravo maior tocava-a em cheio. E fechou com a seguinte sentença: _Não farás parte da comunhão até confessares em penitencia tal agravo à pobreza.
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Ouvido toda história deu Pe. Julinho a absolvição àquela alma contrita a fim de que pudesse tomar parte novamente à comunhão e se ver livre do peso do pecado e da culpa imposta pela Madre. O Padre a absolveu com piedade, mas não deixou de sentir um ar de humor ao ver como aflita estava a pobre noviça. Enfim poderia voltar a comungar, ainda mais nesse dias que se aproximavam o natal.
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Por ocasião do ano novo ordenou Madre Martírios que servisse o pernil assado aos pacientes. O pernil estava submerso em banha de porco, no entanto a lata e a banha não foram suficientes para tampar toda a peça. A ponta do osso ficou de fora e não tendo outro recurso Florzinha tampou-o revestindo com pequeno pedaço de pano.
Que surpresa teve a Irmã noviça quando destampou o suculento pernil. Sua engenhosa preparação de panos não foi suficiente para conter a ação do tempo e dos micro-organismos sobre o pernil. A ponta que ficou de fora da banha foi à porta de entrada para os bichos adentrarem em parte do pernil. Acometida de certo apavoramento e temor com relação a um novo sermão, castigo ou sentença ainda pior por seu descuido no cuidado alimentar entrou em pranto de choro.
Certa Irmã da ordem, de coração mais manso, encontrando Florzinha em tal situação na cozinha e sabida dos últimos acontecimentos com a pele do porco apiedou-se da noviça. Na melhor das boas intenções empreendeu-se a ajudar. Retiraram do pernil o que foi possível aproveitar. Preparam-no ao forno e serviram aos pacientes no meio do pão. Todos ficaram satisfeitos com a nobre refeição de ano novo. A carne não fez mal a ninguém e as partes ruins enterraram-nas em sigilo no mesmo terreno vazio dos fundos do hospital. E o segredo foi mantido pelas duas numa santa cumplicidade.