Joãozinho Faz de Conta
Olá a todos, meu nome é Antenor, Antenor Rosalino, mas todos me conhecem como Seu Lino. A partir de agora estarei aqui na página do autor Sidney Muniz, contando um pouco de minha vida, de casos que presenciei, e o primeiro é de um garoto, um jovem que certa vez me fez chorar.
Bem, conheci ele em uma de minhas andanças por aquela cidadezinha atrevida. Não era dona de um vasto território, mas suas matas fechadas, sua área urbana, sua gente. Ah, me lembro bem daquele povo simples, daquele material humano heterogêneo.
Obviamente sempre há aquelas pessoas que não são tão boas assim, ou quiçá os fatos não contribuam para que sejam. Bem, mas deixe-me falar do que interessa até esse ponto da história.
Primeiro deixem-me apresentá-lo. Seu nome é João, mas ninguém o conhecia assim. Não dava para perguntar: Olá, você viu o João, aquele garotinho? Não, não dava mesmo.
João era um rapazinho curioso. Suas feições eram magníficas, preste atenção no que disse, ele não era belo, mas sim magnífico, como uma obra de arte, onde até mesmo suas imperfeições a tornam grandiosa.
O pequeno possuía cabelos de índio, até o corte me lembrava aquele desenho animado, como era mesmo o nome? Ah sim, o Mogli, o corte era o mesmo. Seus olhos pareciam os de um tigre, o danadinho era dono de um olhar desafiador. Já seu rosto, esse era um pouco quadrado, mas nada que diminuísse a beleza daquele rapazote.
Sua vida não começara da melhor maneira, ainda assim Deus havia reservado um pouco de sorte para o guri.
Era apenas um bebê, quando foi abandonado em uma lixeira, deve ter ficado algumas horas ali, misturado ao lixo daquela caçamba até que fora encontrado por dona Xica, uma velhinha meio biruta, mas de um coração grandioso.
Ela era catadora de lixos, daí entende-se por que ela o achou na lixeira daquele bairro famoso, “Dom Pedro”.
Mas bem, o bebê cresceu, o tempo passou e ele se tornou um garoto, sem maldade, cheio de vida, simples, humilde. Tinha quatorze anos e nunca havia freqüentado uma escola. Ficava lá, vendo todos os dias, a garotada, indo e voltando com suas mochilas e livros. Felizes e uniformizados.
E ele? Ele sempre estava ali, sujo, com seu carrinho de compras, acompanhado de sua mamãe que já estava tão velhinha que andava toda encurvadinha pela rua, cansada e avoada como sempre. Em minhas costumeiras passadas pela cidade lembro-me bem de vê-los caminhando por diversas vezes pelas ruas calçadas daquela urbe, guiando aquele velho carrinho.
Assim que terminava seus afazeres, após revender todo seu lixinho para o Sr. Morais, da reciclagem, ele seguia para sua casa que ficava lá perto do viaduto da rua treze, num aglomerado de casas do governo, que abrigava várias famílias pobres.
A casa tinha apenas três cômodos e um banheiro, mas ele cuidava tão bem da sua, que parecia um pequeno palácio, de tão limpa que ficava. Depois do banho, saia correndo, pegava sua bicicleta velha, aquela que seus colegas chamavam de transplante ambulante; isto porque fora montada com peças que ele encontrava no lixo, e cada peça tinha uma cor diferente, rosa, amarelo, azul, preto, branco, parecia uma bicicleta fantasiada para um desfile de carnaval. Mas ele não se importava. Mantinha-a sempre limpinha, e ia pela rua a pedalar seguindo para sua fábrica de sonhos. Passava em frente à padaria e o padeiro dizia, lá vai o Joãozinho faz de conta, e assim se seguia, o açougueiro, o pedreiro, todos que o conheciam assim o chamavam. Como havia dito, ninguém o conhecia como um simples João.
Ele percorria cerca de 6 km para chegar à seu destino, "a biblioteca municipal". Lá ele entrava e escolhia livros, se sentava sozinho na sua cadeira, próxima a janela, e folheava, como se soubesse realmente ler, até que conhecia algumas letras, tentava aprender sempre outras novas, mas tinha vergonha de que a doce bibliotecária e os outros leitores soubessem que ele não sabia ler. O garoto adorava as histórias e as conhecia pelas gravuras. Pinóquio, Cinderela, Branca de neve e os sete anões, Os três porquinhos, O pequeno polegar, e ele ficava ali se deliciando com aqueles desenhos. Ficava horas lá dentro. A Dona Dalva, bibliotecária, sempre comentava com todos que ali chegavam:
“Aquele é meu leitor preferido, o Joãozinho. Assíduo, vem todos os dias e adora ler contos infantis, é um menino educado e responsável”.
E ele continuava, entrava e saia todos os dias.
Certa vez um de seus vizinhos, que não era lá uma pessoa muito amiga o viu na biblioteca.
- Ué menino, tá aí fazendo o que com este monte de livros, se você nem sabe ler? – De certo ele fez aquilo justamente com a intenção de constrangê-lo. Sempre tem aquelas pessoas, aquelas que chegam a ser insuportáveis.
Todos olharam para ele, surpresos, tinha uma pilha de livros ao seu lado. Dona Dalva estava lá sentada, o olhando, e ele todo sem graça vendo todos o observarem, alguns surpresos, outros até segurando para não rir, outros, infelizmente riram.
Joãozinho deixou a biblioteca, correndo e chorando, montou em sua bicicleta transplante e saiu voando. Pedalava tão rápido que no meio do caminho, ao passar por um buraco caiu e quebrou seu braço esquerdo. Foi parar no hospital onde o ortopedista lhe colocou um gesso.
Estava lá deitado na cama, quando recebeu uma visita por demais estranha. Era Dona Dalva, a bibliotecária, que em seus braços carregava o sonho do garoto, ela trazia um livro.
Ela disse:
- Oi menino, como está seu braço? – Sua voz soou ainda mais doce que o normal.
Ele a olhou ressabiado, e ainda meio sem graça.
- Tá quebrado – Ela sorriu.
- Bem, trouxe-lhe um livro – disse estendendo suas mãos.
- Pra quê, se eu num sei lê – Ele retrucou de cara amarrada.
- Fiquei sabendo de seu apelido, procurei saber onde você mora, e descobri o que havia lhe acontecido. ”Joãozinho faz de conta” – ela deu um leve sorriso – Gostei. Fazia de conta que sabia ler, e fazia isso tão bem que me enganava não é, seu espertinho? Pois bem, vou deixar esse livro com você, e amanhã voltarei pra te visitar novamente – E assim foi embora deixando aquele livro.
O falso orgulho do garoto durou pouco. Foi só ela sair e Joãozinho o pegou com a mão que ainda estava boa e abriu a primeira página. E lá estava aquele bicho lindo, a tal da arara, e debaixo dela uma letrinha, esta ele conhecia, era o “a”. Ele então logo soube o que a Dona Dalva queria. Continuou ali imaginando, fazendo de contas, e cada animal, cada letra tomava vida em sua mente. As que ele desconhecia, as que conhecia, as que inventava. O garoto criara asas...
No outro dia lá estavam eles, ela mostrava a letra e dizia:
- Está vendo! Esse é o “E”, de elefante – E ele repetia:
- E!
- E esta qual é? – perguntava animado. Ela respondia:
- Veja o animal ao lado.
- Parece um urubu – Joãozinho deduzia.
- Pois é; este é o “U”.
E logo ele saiu do hospital. Foi para sua casa, não podia trabalhar, e todos os dias a Dona Dalva ia visitá-lo. O tempo passou e uma forte amizade ali cresceu. Dalva se tornara sua professora até que ele pudesse ser matriculado, o que aconteceria somente no ano seguinte. E assim se passaram os meses e ele entrou para escola, mas não deixou de ter lições com aquela senhora gentil.
O tempo foi passando e ele se tornou um belo homem. Sua mamãe caduquinha com o passar do tempo veio a falecer. Ele seguiu estudando. Se formou e arrumou um bom emprego, graças a indicação de Dona Dalva. Decidiu fazer faculdade, trabalhava de dia, estudava á noite, e seguiu até se formar mais uma vez, ele decidiu nunca parar.
Queria ser professor, e professor um dia ele se tornou. Dona Dalva se encheu de orgulho, um laço forte havia se formado ali. O menino Joãozinho cresceu, seu único aluno, sua única companhia.
No dia de sua formatura na faculdade ele fez uma linda dedicatória para as duas mães que cuidaram dele tão bem. E foi lá que Dona Dalva resolveu lhe contar uma história.
- João, vou te contar algo que nunca contei pra ninguém. Sabe, eu te tenho como um filho. Você entrou na minha vida de um modo mágico, mas eu não sou uma pessoa tão boa como você pensa – Os olhos dela começaram a lacrimejar – Quando ainda era uma jovem, tive um filho, mas não o queria, era uma tola, tinha medo e o coloquei em uma lixeira – suas lágrimas escorriam pelos olhos, percorrendo sua face já enrugada pelo tempo – o deixei em um bairro rico pra que pelo menos fosse educado bem, se tornasse um homem melhor do que eu pudesse formar e nunca mais o vi – João a encarava e Dona Dalva vislumbrou aqueles olhos de índio, aquele olhar do pequeno Joãozinho que ainda vivia dentro do homem à sua frente – me arrependo tanto disso – ela desabafou.
Joãozinho continava a olhar para ela, incrédulo, inquieto, não dava para saber se ele a entendia, se ele a perdoava. Aquilo deixou Dona Dalva ainda mais insegura. ele então a perguntou:
- Onde a senhora o deixou? - Dona Dalva se assustou com a pergunta, fazia tanto tempo. Mas ela se lembrava de cada passo, de cada gesto, do choro do bebê quando deixado no lixo. Se lembrava de ter corrido com todas suas forças, e de ter voltado para buscá-lo e nunca mais tê-lo achado. Afinal, por que o jogara no lixo e não deixara a porta de uma daquelas casas xiques. Os erros acontecem de maneira misteriosa, e o destino, a pouca sorte que sobrara a criança seria a sorte necessária.
- O deixei no bairro Dom Pedro – ela respondeu.
Uma forte sensação tomou aquele homem a sua frente, ele chorava feito uma criança, soluços incontidos, lágrimas guardadas em um submarino naufragado arrebentaram suas escotilhas e jorraram para fora de seu ser. Ele não se conteve, não importava o tempo, os erros, foi um momento de redenção. João, o Joãozinho abraçou-a com toda sua força em meio a um turbilhão de emoções. Ela retribuía o abraço sem saber o porquê de toda aquela emoção.
- Estou aqui mamãe – ele disse entre riso e choro – sou eu, aquele bebê que minha mãe Xica encontrou na lixeira – lágrimas molhavam seu rosto – sou eu seu filho perdido – ele revelou em prantos – aquele mesmo que você ajudou a educar. Sempre estive do seu lado, sentado naquela cadeira fazendo de conta que você lia histórias pra mim – o choro do garoto crescido, chegou junto aos soluços rasos – enquanto eu admirava as figuras. Sou eu, seu filho, mamãe, o seu Joãozinho.
Todos que estavam ali assistindo a cerimônia, todos que conheciam o garoto e o admiravam fizeram questão de participar daquela festa. Nunca vi um salão tão cheio em minha vida, nunca vi uma cena tão marcante.
Dona Dalva caiu de joelhos em meio as pessoas naquela cerimônia, não sabia se agradecia a Deus ou se pedia perdão ao filho, filho esse que a segurou pelos ombros e a levantou. Disse inclusive que nunca sentiu mágoa dela, pois sua mãe biruta dizia que sua verdadeira mãe não era má, era apenas uma pessoa com problemas, e o havia ensinado a não ter este tipo de sentimentos. Ele abraçou-a, e todos aplaudimos aquele momento mágico.
E daquele dia em diante não era mais Dona Dalva, era mamãe, e o laço que os unia ficou ainda mais forte. O Joãozinho continua estudando até hoje, com uma diferença, ele não faz mais de conta. É muito feliz com sua querida mãe Dalva.
Ainda vejo Joãozinho, não consigo chamá-lo de João, simplesmente não caiu a ficha que ele cresceu.
O tempo passa rápido demais, a idade chega de maneira quase que inconveniente, entretanto tenho boas recordações. Lembro-me dele e sua bicicleta, me lembro daquele garoto empurrando aquele carrinho de lixo, e me lembro do Joãozinho fazendo de conta que a vida poderia ser bem melhor. Só aí percebo o poder de um pensamento positivo. A fé é um dom grandioso.
Fim!
Bem, a pedido de minha querida irmã tentarei contar alguns causos para vocês vez em quando, entretanto criei esse personagem em homenagem ao amigo Antenor Rosalino, que é uma pessoa realmente querida por mim. Um recantista que merece aplausos não só pela qualidade de seus textos, que diga-se de passagem são excelentes, como também pela pessoa que demonstra ser.
No mais republiquei esse conto tentando adaptá-lo para categoria, alterei o titulo, espero que para os novos Causos eu consiga realmente dar a vocês o que essa categoria exige.
Se aventurando por outras bandas, esse cara sou eu...
Sejam sempre bem vindos!
Olá a todos, meu nome é Antenor, Antenor Rosalino, mas todos me conhecem como Seu Lino. A partir de agora estarei aqui na página do autor Sidney Muniz, contando um pouco de minha vida, de casos que presenciei, e o primeiro é de um garoto, um jovem que certa vez me fez chorar.
Bem, conheci ele em uma de minhas andanças por aquela cidadezinha atrevida. Não era dona de um vasto território, mas suas matas fechadas, sua área urbana, sua gente. Ah, me lembro bem daquele povo simples, daquele material humano heterogêneo.
Obviamente sempre há aquelas pessoas que não são tão boas assim, ou quiçá os fatos não contribuam para que sejam. Bem, mas deixe-me falar do que interessa até esse ponto da história.
Primeiro deixem-me apresentá-lo. Seu nome é João, mas ninguém o conhecia assim. Não dava para perguntar: Olá, você viu o João, aquele garotinho? Não, não dava mesmo.
João era um rapazinho curioso. Suas feições eram magníficas, preste atenção no que disse, ele não era belo, mas sim magnífico, como uma obra de arte, onde até mesmo suas imperfeições a tornam grandiosa.
O pequeno possuía cabelos de índio, até o corte me lembrava aquele desenho animado, como era mesmo o nome? Ah sim, o Mogli, o corte era o mesmo. Seus olhos pareciam os de um tigre, o danadinho era dono de um olhar desafiador. Já seu rosto, esse era um pouco quadrado, mas nada que diminuísse a beleza daquele rapazote.
Sua vida não começara da melhor maneira, ainda assim Deus havia reservado um pouco de sorte para o guri.
Era apenas um bebê, quando foi abandonado em uma lixeira, deve ter ficado algumas horas ali, misturado ao lixo daquela caçamba até que fora encontrado por dona Xica, uma velhinha meio biruta, mas de um coração grandioso.
Ela era catadora de lixos, daí entende-se por que ela o achou na lixeira daquele bairro famoso, “Dom Pedro”.
Mas bem, o bebê cresceu, o tempo passou e ele se tornou um garoto, sem maldade, cheio de vida, simples, humilde. Tinha quatorze anos e nunca havia freqüentado uma escola. Ficava lá, vendo todos os dias, a garotada, indo e voltando com suas mochilas e livros. Felizes e uniformizados.
E ele? Ele sempre estava ali, sujo, com seu carrinho de compras, acompanhado de sua mamãe que já estava tão velhinha que andava toda encurvadinha pela rua, cansada e avoada como sempre. Em minhas costumeiras passadas pela cidade lembro-me bem de vê-los caminhando por diversas vezes pelas ruas calçadas daquela urbe, guiando aquele velho carrinho.
Assim que terminava seus afazeres, após revender todo seu lixinho para o Sr. Morais, da reciclagem, ele seguia para sua casa que ficava lá perto do viaduto da rua treze, num aglomerado de casas do governo, que abrigava várias famílias pobres.
A casa tinha apenas três cômodos e um banheiro, mas ele cuidava tão bem da sua, que parecia um pequeno palácio, de tão limpa que ficava. Depois do banho, saia correndo, pegava sua bicicleta velha, aquela que seus colegas chamavam de transplante ambulante; isto porque fora montada com peças que ele encontrava no lixo, e cada peça tinha uma cor diferente, rosa, amarelo, azul, preto, branco, parecia uma bicicleta fantasiada para um desfile de carnaval. Mas ele não se importava. Mantinha-a sempre limpinha, e ia pela rua a pedalar seguindo para sua fábrica de sonhos. Passava em frente à padaria e o padeiro dizia, lá vai o Joãozinho faz de conta, e assim se seguia, o açougueiro, o pedreiro, todos que o conheciam assim o chamavam. Como havia dito, ninguém o conhecia como um simples João.
Ele percorria cerca de 6 km para chegar à seu destino, "a biblioteca municipal". Lá ele entrava e escolhia livros, se sentava sozinho na sua cadeira, próxima a janela, e folheava, como se soubesse realmente ler, até que conhecia algumas letras, tentava aprender sempre outras novas, mas tinha vergonha de que a doce bibliotecária e os outros leitores soubessem que ele não sabia ler. O garoto adorava as histórias e as conhecia pelas gravuras. Pinóquio, Cinderela, Branca de neve e os sete anões, Os três porquinhos, O pequeno polegar, e ele ficava ali se deliciando com aqueles desenhos. Ficava horas lá dentro. A Dona Dalva, bibliotecária, sempre comentava com todos que ali chegavam:
“Aquele é meu leitor preferido, o Joãozinho. Assíduo, vem todos os dias e adora ler contos infantis, é um menino educado e responsável”.
E ele continuava, entrava e saia todos os dias.
Certa vez um de seus vizinhos, que não era lá uma pessoa muito amiga o viu na biblioteca.
- Ué menino, tá aí fazendo o que com este monte de livros, se você nem sabe ler? – De certo ele fez aquilo justamente com a intenção de constrangê-lo. Sempre tem aquelas pessoas, aquelas que chegam a ser insuportáveis.
Todos olharam para ele, surpresos, tinha uma pilha de livros ao seu lado. Dona Dalva estava lá sentada, o olhando, e ele todo sem graça vendo todos o observarem, alguns surpresos, outros até segurando para não rir, outros, infelizmente riram.
Joãozinho deixou a biblioteca, correndo e chorando, montou em sua bicicleta transplante e saiu voando. Pedalava tão rápido que no meio do caminho, ao passar por um buraco caiu e quebrou seu braço esquerdo. Foi parar no hospital onde o ortopedista lhe colocou um gesso.
Estava lá deitado na cama, quando recebeu uma visita por demais estranha. Era Dona Dalva, a bibliotecária, que em seus braços carregava o sonho do garoto, ela trazia um livro.
Ela disse:
- Oi menino, como está seu braço? – Sua voz soou ainda mais doce que o normal.
Ele a olhou ressabiado, e ainda meio sem graça.
- Tá quebrado – Ela sorriu.
- Bem, trouxe-lhe um livro – disse estendendo suas mãos.
- Pra quê, se eu num sei lê – Ele retrucou de cara amarrada.
- Fiquei sabendo de seu apelido, procurei saber onde você mora, e descobri o que havia lhe acontecido. ”Joãozinho faz de conta” – ela deu um leve sorriso – Gostei. Fazia de conta que sabia ler, e fazia isso tão bem que me enganava não é, seu espertinho? Pois bem, vou deixar esse livro com você, e amanhã voltarei pra te visitar novamente – E assim foi embora deixando aquele livro.
O falso orgulho do garoto durou pouco. Foi só ela sair e Joãozinho o pegou com a mão que ainda estava boa e abriu a primeira página. E lá estava aquele bicho lindo, a tal da arara, e debaixo dela uma letrinha, esta ele conhecia, era o “a”. Ele então logo soube o que a Dona Dalva queria. Continuou ali imaginando, fazendo de contas, e cada animal, cada letra tomava vida em sua mente. As que ele desconhecia, as que conhecia, as que inventava. O garoto criara asas...
No outro dia lá estavam eles, ela mostrava a letra e dizia:
- Está vendo! Esse é o “E”, de elefante – E ele repetia:
- E!
- E esta qual é? – perguntava animado. Ela respondia:
- Veja o animal ao lado.
- Parece um urubu – Joãozinho deduzia.
- Pois é; este é o “U”.
E logo ele saiu do hospital. Foi para sua casa, não podia trabalhar, e todos os dias a Dona Dalva ia visitá-lo. O tempo passou e uma forte amizade ali cresceu. Dalva se tornara sua professora até que ele pudesse ser matriculado, o que aconteceria somente no ano seguinte. E assim se passaram os meses e ele entrou para escola, mas não deixou de ter lições com aquela senhora gentil.
O tempo foi passando e ele se tornou um belo homem. Sua mamãe caduquinha com o passar do tempo veio a falecer. Ele seguiu estudando. Se formou e arrumou um bom emprego, graças a indicação de Dona Dalva. Decidiu fazer faculdade, trabalhava de dia, estudava á noite, e seguiu até se formar mais uma vez, ele decidiu nunca parar.
Queria ser professor, e professor um dia ele se tornou. Dona Dalva se encheu de orgulho, um laço forte havia se formado ali. O menino Joãozinho cresceu, seu único aluno, sua única companhia.
No dia de sua formatura na faculdade ele fez uma linda dedicatória para as duas mães que cuidaram dele tão bem. E foi lá que Dona Dalva resolveu lhe contar uma história.
- João, vou te contar algo que nunca contei pra ninguém. Sabe, eu te tenho como um filho. Você entrou na minha vida de um modo mágico, mas eu não sou uma pessoa tão boa como você pensa – Os olhos dela começaram a lacrimejar – Quando ainda era uma jovem, tive um filho, mas não o queria, era uma tola, tinha medo e o coloquei em uma lixeira – suas lágrimas escorriam pelos olhos, percorrendo sua face já enrugada pelo tempo – o deixei em um bairro rico pra que pelo menos fosse educado bem, se tornasse um homem melhor do que eu pudesse formar e nunca mais o vi – João a encarava e Dona Dalva vislumbrou aqueles olhos de índio, aquele olhar do pequeno Joãozinho que ainda vivia dentro do homem à sua frente – me arrependo tanto disso – ela desabafou.
Joãozinho continava a olhar para ela, incrédulo, inquieto, não dava para saber se ele a entendia, se ele a perdoava. Aquilo deixou Dona Dalva ainda mais insegura. ele então a perguntou:
- Onde a senhora o deixou? - Dona Dalva se assustou com a pergunta, fazia tanto tempo. Mas ela se lembrava de cada passo, de cada gesto, do choro do bebê quando deixado no lixo. Se lembrava de ter corrido com todas suas forças, e de ter voltado para buscá-lo e nunca mais tê-lo achado. Afinal, por que o jogara no lixo e não deixara a porta de uma daquelas casas xiques. Os erros acontecem de maneira misteriosa, e o destino, a pouca sorte que sobrara a criança seria a sorte necessária.
- O deixei no bairro Dom Pedro – ela respondeu.
Uma forte sensação tomou aquele homem a sua frente, ele chorava feito uma criança, soluços incontidos, lágrimas guardadas em um submarino naufragado arrebentaram suas escotilhas e jorraram para fora de seu ser. Ele não se conteve, não importava o tempo, os erros, foi um momento de redenção. João, o Joãozinho abraçou-a com toda sua força em meio a um turbilhão de emoções. Ela retribuía o abraço sem saber o porquê de toda aquela emoção.
- Estou aqui mamãe – ele disse entre riso e choro – sou eu, aquele bebê que minha mãe Xica encontrou na lixeira – lágrimas molhavam seu rosto – sou eu seu filho perdido – ele revelou em prantos – aquele mesmo que você ajudou a educar. Sempre estive do seu lado, sentado naquela cadeira fazendo de conta que você lia histórias pra mim – o choro do garoto crescido, chegou junto aos soluços rasos – enquanto eu admirava as figuras. Sou eu, seu filho, mamãe, o seu Joãozinho.
Todos que estavam ali assistindo a cerimônia, todos que conheciam o garoto e o admiravam fizeram questão de participar daquela festa. Nunca vi um salão tão cheio em minha vida, nunca vi uma cena tão marcante.
Dona Dalva caiu de joelhos em meio as pessoas naquela cerimônia, não sabia se agradecia a Deus ou se pedia perdão ao filho, filho esse que a segurou pelos ombros e a levantou. Disse inclusive que nunca sentiu mágoa dela, pois sua mãe biruta dizia que sua verdadeira mãe não era má, era apenas uma pessoa com problemas, e o havia ensinado a não ter este tipo de sentimentos. Ele abraçou-a, e todos aplaudimos aquele momento mágico.
E daquele dia em diante não era mais Dona Dalva, era mamãe, e o laço que os unia ficou ainda mais forte. O Joãozinho continua estudando até hoje, com uma diferença, ele não faz mais de conta. É muito feliz com sua querida mãe Dalva.
Ainda vejo Joãozinho, não consigo chamá-lo de João, simplesmente não caiu a ficha que ele cresceu.
O tempo passa rápido demais, a idade chega de maneira quase que inconveniente, entretanto tenho boas recordações. Lembro-me dele e sua bicicleta, me lembro daquele garoto empurrando aquele carrinho de lixo, e me lembro do Joãozinho fazendo de conta que a vida poderia ser bem melhor. Só aí percebo o poder de um pensamento positivo. A fé é um dom grandioso.
Fim!
Bem, a pedido de minha querida irmã tentarei contar alguns causos para vocês vez em quando, entretanto criei esse personagem em homenagem ao amigo Antenor Rosalino, que é uma pessoa realmente querida por mim. Um recantista que merece aplausos não só pela qualidade de seus textos, que diga-se de passagem são excelentes, como também pela pessoa que demonstra ser.
No mais republiquei esse conto tentando adaptá-lo para categoria, alterei o titulo, espero que para os novos Causos eu consiga realmente dar a vocês o que essa categoria exige.
Se aventurando por outras bandas, esse cara sou eu...
Sejam sempre bem vindos!