A lenda do Tição
O Tição
Texto de Daniel Lellis Siqueira
Escrito em 08/12/2012 em Costa do Sauípe - BA
Era em meados de Novembro, tempo que na Bahia faz muito sol, eu saí do bangalô de Noele depois de já ter tomado mais de meio litro de cachaça.
Minha visão estava turva, por isso eu peço, por favor, para o senhor não se atentar muito à minha fala, pois sei que volta e meia essas coisas não vão fazer sentido. É que depois daquele escorregão no chão do barco eu acabo que não consigo lembrar mais muito bem das coisas. Bati com a minha cabeça com força, sabia? Tem até um galo aqui que depois eu lhe mostro. O senhor tem um tempinho pra trocar esse dedo de prosa, né? Porque se não tiver eu lhe conto numa hora mais oportuna.
Onde eu estava mesmo? Ah. Sim. Pois bem, já era alta madrugada e a dona me tocou do estabelecimento. Era uma senhora gorda que cismava em ostentar um líquido amarelado nos cantos da boca. Dentes ela não tinha nenhum, não senhor. Usava era uma dentadura velha, que pulava a cada gargalhada, que o pároco lhe deu de umas doações descartadas no fundo de uma caixa. Sabe como é, né? A igreja gosta de ajudar as pessoas...
Eu então, com a vista meio enevoada, saí pelas tantas me esquivando das luzes da cidade que já fugiam das solas do meu chinelo. Na época eu devia ter uns 30 anos, mas a primeira vez que eu pus um chinelo no pé pus depois de já estar trabalhando. Comprei o chinelo quando eu tinha doze anos e sete meses de idade...
A cidade ia escurecendo à medida que ela ia ficando para trás, me peguei a andar por um caminho que eu sempre fazia, mas o diacho do caminho parece que espezinhava a minha atenção.
Depois de uma boa andança, vi um vulto pequeno e atarracado com um facão na cintura e umas galochas que soltavam um som engraçado:
–Quem vem lá? Perguntei imponente, ninguém respondeu: -Vem em paz? Novamente nada. O vulto foi se aproximando e, de danado que eu sou, pensei que ia enfrentar o caboclo era na unha. Por que ser tão grosseiro? Pra mim alguma coisa tinha... Na hora eu pensei em alguma coisa do tipo assombração, mas o tempo estava muito manso pra ser alguma obra do tinhoso. Resolvi riscar com os olhos os olhos dele, pra ver se por um acaso o homem estava chorando ou algo assim, pois homem que é homem nunca deixa um outro sem resposta. O homem parou diante de mim, como o senhor está agora, e me encarou com uma voz rasgada e forte.
-Seu moço. Acho melhor o senhor não caminhar por estrada hora dessas não... Sabia que no escuro se esconde todo tipo de gente? Sabia que a maldade tem um véu negro? E dependendo do caboclo, pode até sufocar de tanto medo!
Essa foi a resposta que ouvi de um senhor com olhos fundos e barba por fazer.
Nesse momento soprou um ventinhozinho gelado, nada de dar medo não, pois quando ventava desse jeito era porque no dia que já vinha ia dar um calor tremendo. Ele desviou de mim e continuou sua caminhada silenciosa, e, assim como surgiu no rebaixo da estrada, sumiu sem nem menos eu perguntar o porquê daquelas bobagens que ele me dizia.
Eu lá sou homem de ter medo? Medo eu tenho é de não conseguir pescar nada no dia e ter que comer farinha de tapioca seca. Medo eu tenho é da fome, por isso eu trabalho, gosto de trabalhar não... Mas como eu sou sozinho, pai deus já levou e mãe nunca me disseram quem, se pescava pouco tava bom. Uma refeição me forrava o dia inteiro.
Seu moço, calibrado do jeito que eu estava, mal percebi que as luzes da cidade tinham desaparecido assim como o chão que eu passava. A terra batida ia dançando uma música estranha atrás dos meus chinelos. Cavacos e pedras iam sassaricando num movimento destrambelhado, rolando estrada abaixo e, de repente, silenciavam-se... Já avisei o senhor que a minha idade não permite mais lembrar-me com mais exatidão que a que eu estou lhe contando. Pode ser que eu coma bola ou que te conte essa história de trás pra frente, mas minhas barbas brancas lhe aparentam certa sinceridade, não acha?
Lá pelas tantas por detrás do barro do morro pequeno tinha a casa do seu Garrini, comerciante local que vendia coisas como lamparinas e roupas de rendão. Pelo tempo que eu andava, numa escuridão de nem as mãos, eu estava perto de seu Garrini. Costumava gritar: -Emburané ôi vatupê Garrini! Se ele tava em casa me assoviava o grito de guerra dos carcarás. –Me dê uma tapera de resina e meio litro de querosene! E continuava a andança até a minha casa.
Antes de chegar no diacho da casa já ouvia os assovios! –Emburané ôi vatupê, Garrini! Gritei com entusiasmo porque sabia que estava perto de minha casa. Ói seu moço, a partir de agora a história vai tomando um rumo mais tenebroso. Se o senhor quiser eu acabo por aqui nossa conversa. Aliás, nem sei porque diacho eu fui cavar essa lembrança... Tinha até me esquecido...
Pelas crinas de Obaluaiê que eu cruzei com o Tição. Depois do meu grito o assovio começou a acelerar freneticamente como se o carcará estivesse sendo chacoalhado pelo pescoço com toda força assim!
O assovio cessa e nada de casa de Garrini. Teria eu me perdido? Mas isso era impossível, fazia aquele caminho desde quando meus pais aqui chegaram fugindo da seca de Campina Grande. A estrada só tinha dois caminhos, um pra ir e um pra voltar. Achei melhor apertar o passo para logo encontrar o Garrini e talvez pedir dormida para ele naquela noite.
Não que eu estivesse com medo, estava só com um desconfortozinho de noite mal dormida. Aquela cachaça então não batia nada bem na boca do estômago, tinha comido no café da manhã um bolo de milho e uma tapioca com mungunzá, misturou tudo com aquele álcool forte e daí, pronto.
Com o barulho das folhas no vento e os meus passos apressados, tentava a todo custo ver qualquer coisa. Até pensei em dar meia volta e andar até chegar na Noele novamente. Mas não conseguia sequer olhar para trás. No máximo um rabo de olho sem nenhuma pretensão, pois quem já andou no escuro sabe que nunca se deve andar de volta. O corpo da gente avisa isso... Não que eu não olhasse para trás por medo, não é isso. Queria apenas chegar em casa e me esticar numa rede macia pra bebida assentar no bucho. Você já andou no escuro? É bem mesmo o que eu disse, né?
De repente milhares de carcarás começaram a gritar. Como se o Garrini tivesse se multiplicado por mil. Era como milhares de cigarras no pé do meu ouvido. Comecei a correr. Os assovios aumentavam. Parei de correr eles começaram atrás de mim. Seu moço, essa hora eu fiquei com um medo danado... Mesmo que depois de um tempo no breu você começa a enxergar que bem demais. Vê até o que não existe. Diziam que a Caipora andava por aquelas bandas, Oxóssi que me ajude a sair daqui!
O barulho cessou.
Uma ventania das bravas arrastava e balançava o alto dos coqueiros, mas nenhum tiquinhozinho de vento encostava em mim. Daí eu percebi que a coisa ficava brava... Eu tava pra me encontrar com assombração. De nenhuma maneira chegava o armazém do seu Garrini, o que dirá a minha casa. Corri... O barulho da terra esfregando e do cascalho escorregando dos meus chinelos era alto. Nisso eu piso em falso e me escapa o chinelo do pé. Caí. Olha seu moço, o senhor não poderia comprar uma dose de pinga pra eu molhar as palavras, não? O que eu estou lhe contando nunca mais vai sair de sua cabeça não. Sei que o senhor está muito curioso para não me deixar mais contar.
Eu no chão não sentia nada. Não sei se foi por causa do álcool ou se alguém amparou minha queda, mas sabia que agora era fatal. Precisava olhar para trás. Precisava encontrar o meu chinelo em meio à escuridão ou chutar o outro de banda, levantar e correr o mais rápido possível. O Tição estava próximo!!! Conseguia sentir o cheiro dele. Seu moço já deve de ter sentido cheiro de couro que apodrece no sol. Ou de couro de cabra esticada em tirantes de candeia. Pois então, o cheiro é parecido. Dizem que o Tição matava homens que não voltavam para casa cedo às vezes só com o cheiro. Volta e meia a gente encontrava um pescador daqui da vila – que na época era bem menos que hoje – morto pelas estradas e areais do interior. Às vezes eu tinha certeza que era coisa da sereia seca, mas essa é uma outra história. O corpo de um homem morto pelo tição era apavorante, lembro-me de moleque ter visto um homem morto na beira da vila, com um olhar apavorado e boca escancarada, dava até pra ver seus dois dentes faltantes. Com uma diferença, quando viraram o corpo do homem, a parte de trás dele estava lisinha. Era como se ele tivesse sido arremessado de costas no chão e alisado o terreno onde morreu. Estava sem a língua e sequinho de tudo. Nenhuma gota de sangue. Seu moço, deus que me perdoe, mas se eu estou aqui hoje contando essa história pro senhor é porque eu dei uma sorte danada. Ô se dei...
Voltei primeiro meus olhos para direita. Logo em seguida com a cabeça mal voltada para trás consegui ver algo que estremeceu meus ossos. Os cascalhos que se arrastavam atrás de mim começaram a tomar forma. Na escuridão a gente logo se acostuma enxergar, Oxalá que eu não queria enxergar naquele momento, deus que me perdoe.
Os galhos das árvores pararam de balançar com o vento, todos os animais pararam de fazer barulho, em meio àquele silêncio cortante comecei a ouvir as pedras se arrastando, se juntando e se agrupando, formando um monte de pedras...
O monte foi crescendo até virar uma sombra em meu rosto naquela lua cheia. A lua foi apagada completamente... Escuto um grito muito alto, mistura de mil carcarás em guerra com mil tiros de carabina. Começa a chover... Seu moço, sei que o que eu estou lhe dizendo pode parecer a maior mentira do mundo. Sei também que o que eu passei parece ter durado uma eternidade, mas a verdade é que desde o momento em que ele surgiu até momento que eu fugi dele devia ter passado uns... Uma puxada de rede!
Seu moço, o tição tinha uns três metros de altura, cada músculo desenhado em carne podre e pedras. Ele rugia e diziam que corria mais rápido que uma flecha. O Tição, nu diante de mim, me parecia uma coisa meio bicho meio gente. Forçosamente abriu os olhos, que mais pareciam tripas de galinha, pústulas pulsantes...
Tentei correr, fui arremessado uns dez metros pra perto de um tronco seco no pé da estrada. Um barulho seco, um peso absurdo montou em cima de mim. Senti um calor misturado com um cheiro podre, fechei meus olhos e entreguei ao meu pai Oxalá meu corpo e meus temores... O bicho fechou a boca. Montado sobre mim eu podia ouvir barulhos como vísceras e estalos diante da minha face. Prendi minha respiração e não consegui mais abrir os olhos. Ói seu moço, até hoje eu fico arrepiado de lembrar mais ou menos como foi naquele dia! Faz uns trinta anos que eu não contava essa história pra ninguém.
Diziam que o Tição era um pescador muito bacana, boa gente, trabalhador e o escambau. Problema é que ninguém podia assistir o desnudamento da Lua. É sim, é o que a gente chama de desnudamento, quando a lua tira a roupa preta e brilha toda nuzinha pro mundo. É coisa de estalo de dedo o momento do desnudamento, mas homem nenhum deve ficar olhando pra ela nesse momento não. Pra essas horas marinheiro que se preze tem que estar dormindo para estar logo cedo na lida na manhã do dia seguinte. Se estiver de madrugada olhando pra Lua é que boa gente não é... Homem que gosta da noite não presta não seu moço... Só me ouvindo pra saber. Dizem que o Tição tomou um banho de lua. A lua solta uma luz tão forte, mas tão forte, que o homem queima na hora os dois olhos, e não passa a enxergar mais nada. Daí ele não consegue mais comer, nem se prosear com ninguém e acaba definhando pelas estradas afora. A terra come tudo que é dele, mas ele junta tudo de novo pra dar uma lição em homem que bebe e passeia pela madrugada, pra ver se a lua perdoa e devolve pra ele os olhos que um dia queimou.
Dizem por aí que o Tição é um socador dos brabos... Arrebenta tudo o que vê pela frente, quando bate num homem estraçalha, fazendo das tripas bagaço e torcendo o corpo assim que é pra secar o sangue.
Existem vários Tições por aí seu moço, tudo quanto é homem que sai de noite e vê o desnudamento sofre pela eternidade até a lua perdoar o infeliz. Ói seu moço, acho bom o senhor ir embora porque esse fim de tarde ta ameaçando chuvinha fina, o senhor pode pegar um resfriado.
Enquanto isso eu continuo aqui bebendo e feliz, por ter conhecido e enfrentado o Tição. Ninguém me segura seu moço! Oxalá me protege desses egum eternamente...