UMA SERPENTE NO CAMINHO DO CASÓRIO
Por josafá bonfim
O lugarejo estava em festa. Além do período de festejo religioso de São Francisco, corriam os preparativos para o casamento da filha única do capitão, com o filho de um coronel, dono de imensa área de terras no território da vizinha vila das Pedreiras. Convidados de toda a região eram recebidos pela família anfitriã que esmeravam em hospedagem digna aos visitantes que chegavam a todo momento. Jatobá, povoado isolado e distante, jamais vivera, tamanha animação e expectativa. Fogos pipocavam a todo instante, intercalados pelo estrondo da ensurdecedora “ronqueira” - instrumento sinalizador de folguedos - ouvida à léguas de distância, anunciando o dia festivo.
Para satisfazer o apetite dos convivas, foram abatidas duas novilhas, três bodes, três porcos e certa quantidade de aves que incluía perus, patos, capotes e capões. Enquanto a orquestra de metais se resguardava para o momento solene, a sanfona e o zabumba rasgavam o fole sem trégua nem descanso, regado à legitima cachaça do mais conceituado alambique das terras vizinhas. Era o casamento do século na região, ninguém queria perder o badalado acontecimento social. Os caminhos para o lugarejo encontravam-se pinhados de transeuntes, entre convidados e não convidados. Fossem em cavalgadura ou a pé, todos desejavam participar da grandiosa festa.
A presença da comitiva que trazia o juiz de paz e o tabelião cartorário, era aguardada com antecedência de um dia, com bastante expectativa pelos organizadores da cerimônia.
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O dia mal dera o ar de sua graça e os animais com seus ocupantes seguiam troteando em fila, nos caminhos tortuosos, entre a vila e o povoado festivo, num sobe e desce de ladeiras, contornando as curvas que o rio impunha. Na linha de frente figurava o senhor juiz de paz e seus assistentes, um pouco mais atrás alguns convidados de destaque, enquanto no final encontrava-se o tabelião com outros acompanhantes.
Ao se aproximar do Insono, nome dado ao igarapé perene que ficava no percurso; o tabelião, em ato solitário, resolve recuar na cavalgada, para dar água ao cavalo de sua montaria e aproveitar a oportunidade para verter água, pois viera retendo a urina ha algumas horas propositalmente, para não atrasar a viagem. Enquanto isso, os demais seguem a caravana, rumo ao destino derradeiro da viagem.
Ainda não chegara o meio dia. O sol apresentava-se sem sua luminosidade intensa característica dessas horas. Lentas, as nuvens passavam baixo, mostrando um céu nebuloso, com discreto ar de mormaço. As palmas dos buritizais mal se buliam, na clarividência da temperatura pouco agradável do recinto.
O servidor cartorário aproxima o animal da margem do igarapé para assim poder fazê-lo saciar a sede. Salta ao chão, soltando a rédea da montaria. Expõe sua genitália a esmo enquanto um jato represado, líquido e morno, cai próximo às suas botas, misturando-se às águas frias do riacho. Absorto, calmamente contempla a paisagem bucólica no derredor de um lago na sua confluência com o igarapé. O verde imenso que circundava o pequeno espelho dágua, formado pelas arvores frondosas e as ervas aquáticas, pareciam trazer-lhe o universo para aquele local mágico e contemplativo de exuberante natureza viva.
Vagueou as atenções, ao captar o melodioso canto de uma saracura solitária, que resplandescia no juçaral, ali nas redondezas. Pouco afeito às intempéries e enigmas do campo, encontrava-se tão imerso em seu imaginário, que não conseguira captar o primeiro aviso da natureza em "ebulição": um silvo ecoara como um fino assovio, sibilando os tímpanos dos viventes que por ali se encontravam. Como se a contorcer-se, a vegetação aquática do lago começa a volver-se lentamente, em ondas flutuantes.
Não houve trégua nem outro aviso. Ao recompor-se, perdera em frações de segundo a noção de perigo e o reflexo falhou ao tentar esquivar-se do ataque fulminante. Uma criatura asquerosa e imensa projeta-se, sinistramnte das profundezas das águas, laçando-se sobre o homem, numa arrebanhada fatal, sem a vítima perceber o que na verdade estava ocorrendo.
Sentiu um brusco impacto sobre o corpo, com a terrível sensação de uma forte mandíbula destroçando-lhe a base do pescoço. Instante em que um charco de sangue descera-lhe pelo peito umedecendo a jaqueta azul, até encharcar o “terno” por completo. Nem mesmo um grito fora capaz de escapar. Imprimiu em vão o resto de forças existente, contra as potentes laçadas que envolviam sua musculatura, comprimindo braços e costelas, trincando-lhe os ossos aos poucos. Inapelavelmente perdera a força por copleto, sendo arrastado até sucumbir-se de vez nas profundezas do pântano. Sem alento, sem folego e sem o brilho nos olhos, deu seu ultimo suspiro, - o de alívio -, subimerso para sempre, nas águas “tinturadas” pelo sangue que jorrara do seu trucidado corpo.
São Luís/MA, 04 de janeiro de 2013