Armanumtemcô
Armanumtemcô! Habituara-se desde cedo a ouvir, da boca de sua ama-seca, descabida interjeição. Provavelmente um lamento ou protesto em sua língua-mãe, que nem o vento e o mar daquela penosa travessia e muito menos a chibata ardendo na chaga sangrada, conseguiram apagar. A preta velha, alforriada havia a pouco, manteve-se firme no seu propósito de ver crescer o Sinhozinho, e em sua absurda ignorância, ensinar-lhe o pouco que a vida lhe tinha permitido. Ganhara regalias desde que assumira a função na casa grande, o que não diminuía a sua aflição de ver o filho, junto com os outros negros da senzala, esvaindo-se de vida, pelos poros de uma pele, cujos quelóides, denunciavam o tamanho da sua insubordinação.
Por vezes a negra tentara dialogar com o menino e fazê-lo ver a tamanha atrocidade que o rodeava, mas dando-lhe de ombro, o rapazote saía dizendo - pra que serve a chibata senão ensinar a cavalos e negros o seu ofício? Ela não lhe queria mal. Sabia que uma goiabeira jamais daria algum fruto, que não fosse goiaba.
A caneta de ouro da princesa não pegara de surpresa o senhorio daqueles arredores. Aos poucos, os negros foram substituídos por caboclos, e muitos deles, após gozarem dos prazeres de sua liberdade, se viram obrigados a voltar às terras execradas para não morrerem de fome. A velha negra acompanhou toda a lamúria da sua gente pela janela da cozinha do casarão, e questionada pela sua senhora se partiria, limitou-se a dizer - Pra onde? - e virou as costas para cuidar de seus afazeres. O filho não compartilhava do conformismo da mãe. Com a bênção da progenitora e um beijo na face, sumiu-se pelo mundo. Uma caneta de ouro, mesmo na mais nobre mão, pode mudar leis, mas não convicções ou preconceitos. O negro passou a ser livre, mas continuava negro em sua essência. Agora ele tinha as mesmas obrigações de um branco, mas continuava tendo os direitos de um negro.
No casarão, o menino se fez moço e fora mandado a capital para estudar direito, como era de costume. A despedida foi mais dura pra velha que a do próprio filho. Ela se apegara de uma forma tão intensa ao rapaz que não conseguia explicar nem a si mesma. Ela via nos olhos dele algo de extraordinariamente bom e achava que em algum momento da sua vida, ele se daria conta disso.
Os anos se passaram. O moço, agora era homem de bem, firme em suas atitudes e ponderado em suas decisões, características estas, que aliadas as suas boas notas no curso de direito, o elevaram rapidamente ao posto de juiz da comarca, ao regressar à sua cidadezinha. Em seu retorno, não mais encontrou a negra velha, que de tão velha, perdera a serventia para aquela gente, e numa manhã, após recolher o café, fora informada que a charrete a esperava na porta dos fundos, para levá-la dali, com um punhado de moedas e uma trouxa de roupas, para o lugar que fosse, desde que longe dos olhos daqueles que lhe sugaram à mingua o sopro da vida.
Ele limitou-se a lastimar o ocorrido e seguiu seu curso. Dedicava-se com afinco as atividades forenses, destacando-se pela sua perspicácia e imparcialidade.
Certo dia ocorreu que um crime chocou o lugarejo.Um negro, de posse de uma faca, desferiu um golpe fatal em um importante membro da comunidade local. O crime, transcorrido à luz do dia, em local público, fora testemunhado por diversas pessoas que deambulavam pela praça central naquele horário. O linchamento seria inevitável, não fosse a rápida intercessão da polícia. Este fora, até então, o caso mais grave ocorrido naquele lugarejo, entre negros e brancos, desde a abolição. A cidade ficara em polvorosa e aguardava com ansiedade o julgamento do agora cognominado “Filho do Diabo”. Para a grande maioria, o julgamento seria uma mera formalidade a fim de burocratizar uma morte iminente. Para o juiz, era mais um caso, que deveria ser investigado, elucidado e sentenciado, conforme pregavam as leis. Foram inúmeros longos dias, madrugada adentro, ouvindo-se testemunhas e conjecturando-se hipóteses, para desvendar-se as entrelinhas do ocorrido. O tribunal encontrava-se completamente tomado, quando bateu-se o martelo. Legitima defesa! Todos se entreolhavam, embasbacados, incrédulos com o que estava acontecendo. Alguns, em sua renitência, exclamavam – Mas como?! Ele é negro! Como se ao negro fosse negado o direito de defesa. O caos se instalou nas dependências do que fora criado para ser o símbolo da ordem e da justiça. A muito custo e intimidação, os policiais conseguiram restabelecer a paz no recinto e conduzir aquela imensa massa de inconformados para as grandes portas laterais de saída.
Quando tudo já havia se aquietado, uma mulher de meia idade, vestindo luto, se aproximou do juiz e, enxugando as lágrimas que insistentemente lhe corriam pela face, perguntou, olhando incomodamente dentro dos seus olhos, como ele poderia permitir que a alma de um negro fosse poupada após este tê-la tirado do corpo de um branco. O juiz, reconhecendo a velha senhora sentada ao fundo, que agora abraçava aos prantos o filho recém liberto, começou a caminhar impassivelmente pelo corredor principal da câmara e, olhando de soslaio para a desolada senhora, disse apenas: - Alma não tem cor!