O xixixi da chuva fina quebrava suavemente o silêncio da madrugada.  Gotas miúdas caiam, escorriam para o rio que corre para o mar além das Minas Gerais. Naquele tempo chovia, o sol se escondia semanas a fio, quase mês, e o rio transbordava. Os meninos se banhavam nas águas barrentas com as vergonhas de fora. Não tinham maldade. A infância era tão ingênua e bela como as flores que as meninas colhiam para enfeitar o presépio do Menino-Santo. Era estação das águas. Vinha a chuva abençoar o pasto, trazendo berro de bezerro novo. A  jitirana espalhava suas flores deixando a mata em tom azulado. A lagoa enchia e depois vazava para o rio e o rio deixava peixe na lagoa. O trovão trovejava e trazia a coalhada escorrida, escorrendo numa bola de pano pendurada no travessão da casa. 
O destemido vaqueiro desceu da montaria. Graudez não latiu. Abanava o rabo e lambia os pés do dono. Cachorro Ninguém ladrava desesperadamente, os outros respondiam longe. Zenofre largou a cravina no chão. Amarrou a lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um cutelo e em volta da cintura atou uma corda de laçar boi. Adilson Júnior manobrou a carabina de dez tiros e fez mira para disparar no pau-preto que se movia.
—Não atire!  O latido não acusa onça.
Zenofre subiu na árvore e no emaranhado da copa deparou-se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. O vaqueiro aproximou-se, jogou lanço certeiro. Prendeu o  animal com a grossa corda. Puxou devagar, sempre dando volta, tecendo uma teia entorno do ser tão semelhante ao humano. Aos poucos foi dominando a fera e já no chão, por um descuido dele, a selvagem mordeu-lhe a panturrilha. Os cães avançaram para estraçalhar a caça. Zenofre repreendeu todos eles e Graudez veio lamber a ferida onde a índia cravara os dentes. Ela balbuciou algumas palavras em língua  que ele não conhecia: “Xambioá...Xambioá... Xambioá...Apinajé.” E o vaqueiro perdeu o faro da onça.
 Adilson Júnior sujou as calças.
—Esse bicho fedendo demais, seu Zenofre! Disse o rapaz da cidade.
—O bicho cheira a caça do mato, respondeu o outro.
Vaqueiro Zenofre uniu as mãos fechadas em concha e soprou entre os polegares. O borá quebrou o silêncio da mata percorrendo um raio de meio quarto de légua. Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu...fííííu... João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo dos primeiros nós. Piruruca perdeu o ritmo da cavalgadura, a tralha e a vareta de açoitar cavalos. Os outros, cada um trazia seu quinhão de medo ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo devagar no canto da passarada. Caburé soltou canto assombroso apregoando morte. Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.
—Alguém viu Joselino? Quis saber Zenofre.
O parceiro de Joselino era Piruruca, gente vinda do Curral de Dentro com o juízo de fora. Piruruca tinha perdido a tralha, tudo que levava e se desgarrado do companheiro.
Ninguém viu Joselino.
Esperaram um quarto de hora, assobiaram,gritaram o nome dele, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada do vaqueiro Joselino aparecer ou dar ares de vida. Voltaram sem o companheiro. Mais tarde, haveria algum camarada descansado, refazer a trilha e encontrar o vaqueiro deixado para trás.
Espiados por um olho de sol coado entre os galhos da mata, romperam caminho de volta e horas depois, cavalos e cavaleiros riscaram o pé da cancela na sede da fazenda, visivelmente cansados, ansiosos e de boca seca. Era justo o prometido: cada caçador ganhar na volta uma bezerra. Tanto faz ter chegado na primeira hora como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma.  À frente da tropa ia Zenofre, puxando a índia, sempre seguido de perto por seu cachorro de estimação. Alguns de casa inda guardavam repouso da noite de ontem.  Cláudio acabara de tomar uma xícara de café escoteiro e estava com roupas de dormir, quando ouviu o tropel. Queria saber do sucedido com a caça e com os caçadores.
ficando maluco, homem de Deus! Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?
—Se comeu, não sei. Mas é uma índia ‘fema’.
— O bicho fala?
—Prezei. Ela dixe. “Xambioá, Xambioá... Apinajé...
A índia, provavelmente, era da tribo Apinajé e tinha uma ferida debaixo do peito de onde escorria uma resina semelhante à mucilagem da babosa; gosmenta e brilhante como o rastro deixado pela lesma. Taturana, concluiu Cláudio. Taturana queimou o peito da índia.
— Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua, das mais velhas, para cobrir este animal.
—Nossa! O cheiro é bom, a mulher, feia.
—Que vamos fazer com essa coisa, seu Cláudio?
—Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelas mãos, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também esta fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora.
Durante duas semanas a índia só aceitava água e fruta. Foi quando Zenofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário. Vaqueiro Zenofre retirou o relicário do pescoço e deu à índia. Ela pôs no próprio pescoço, em ritual indígena, depois o devolveu. O vaqueiro ficou sem ação. A selvagem gesticulou, disse algumas palavras ininteligíveis e Zenofre percebeu pelos gestos dela, que deveria repetir encenação. E o fez, mantendo o escapulário no lugar onde sempre estivera: no pescoço dele. Eram amigos ou estavam casados, no entender da índia.