A primavera de 2008 estava chegando ao final. As manhãs estavam quentes e abafadas. Como todas as manhãs, naquela quarta-feira de novembro, eu seguia em um ônibus para o trabalho, pela Avenida Antônio Carlos. O calor estava particularmente opressivo, produzindo uma sensação de peso sobre os ombros e o peito. Talvez fosse consequência da baixa umidade do ar. A lentidão do trânsito, com paradas breves em um ou outro lugar, onde ocorriam curtos engarrafamentos, aumentava aquela sensação de opressão. No entanto, o trânsito fluía lentamente, mas fluía.
     Para conviver com o tédio e tentar reduzir o efeito da opressão do calor, ia me distraindo com a paisagem urbana. Primeiro, reparei nas construções, procurando me lembrar de quando surgiu uma casa de dois andares construída no lugar de uma antiga e pequena casinha, ou de quando surgiu um prédio comercial no lugar de um sobrado. Na verdade, as casas não surgem de um momento para o outro. Porém, para quem passa todos os dias por aquele caminho sem reparar na paisagem, a sensação é de surgimento de umas construções em lugar de outras, modificando a paisagem.
     Ao longe, me chamou a atenção um Ipê amarelo, com uma copa abundante de um amarelo vivo, quase luminoso. Provavelmente era um daqueles ipês que sobrevivem nos quintais de casas antigas e que chamam a atenção na primavera e fazem bem aos olhos e ao espírito.
     Passei, então, a contar o número de ipês amarelos que eu conseguia avistar, através da janela do ônibus, no quintal das casas ou na arborização das ruas. Ao contá-los, imaginava que os ipês com as copas mais abundantes e mais douradas eram as árvores mais velhas e, em comparação com as pessoas, concluía que quanto mais velhas eram as pessoas, menor eram suas "copas" e ria por dentro.
Em dado momento comecei a reparar nas pessoas que transitavam na rua e nas que estavam paradas em pontos aguardando a passagem dos ônibus que as levariam ao trabalho ou para casa. Próximo ao viaduto São Francisco ocorreu um engarrafamento que obrigou o motorista a parar por um bom tempo. Talvez tivesse ocorrido algum acidente mais à frente, causando o engarrafamento. Enquanto isso, ia reparando nas pessoas nos pontos de ônibus e as que simplesmente passavam pela rua. Eram pessoas que faziam parte da paisagem e nenhuma me chamava a atenção em particular. Eram homens mais velhos em menor número, seguidos de homens jovens, em um número um pouco maior. Mas, a maioria mesmo eram as mulheres, de todas as idades e de todos os feitios. Mas, ainda assim eram apenas parte da paisagem.
     O que prendeu minha atenção foi um homem negro, vestido com roupas simples e surradas, calçando um tênis já bem carcomido pelo uso, que vinha caminhando cambaleante. Seus passos eram incertos, mas ele seguia em frente sem hesitação, de forma lenta e permanente. Próximo a um ponto de ônibus, o homem, que agora eu identificava como "o bêbado", abaixou-se próximo a uma "boca de lobo" e apanhou uma latinha de alumínio, de refrigerante ou de cerveja. De onde eu observava não dava para identificar, mas era possível ver que era uma latinha. O bêbado apanhou a latinha, balançou-a com o bocal para baixo,como para escoar e retirar qualquer liquido que restasse dentro dela ou outra sujeira qualquer. Feito isto, colocou a latinha no chão, olhou para ela por alguns segundos, flexionou a perna, levantando o pé e desferiu um pisão para acertar a latinha e ... pasmem... ele errou o golpe e deu um pisão com vontade no chão. Imediatamente o bêbado soltou em alto e bom som um palavrão pelo erro, seguido de impropérios resmungados, como que culpando a latinha pelo seu erro. Ele se abaixou, ajeitou a latinha no chão novamente, escolhendo um lugar melhor para posicioná-la, ergueu o corpo e olhou para ela por alguns segundos. Outra vez, ele ergueu a perna e desceu a sola do pé com votade em direção à latinha e ... novamente errou. Desta vez seu pé resvalou na beirada da latinha, fazendo com que ela saltasse para o lado e caísse no chão com um característico som de metal.
Desta vez o bêbado não dirigiu nenhum palavrão à latinha. Talvez, da primeira vez ele tenha achado que a latinha fora traiçoeira com ele e saiu do lugar para não receber o pisão. Desta vez, porém ele deve ter concluido que o erro foi dele que não direcionou corretamente o pisão. Talvez fosse mais uma questão de jeito do que de força.
Pela terceira vez, o bêbado, pacientemente abaixou-se, pegou a latinha, ajeitou-a no chão de forma que ela ficasse em pé (se é que lata fica em pé), ergueu o corpo, ajeitou a calça puxando-a pela cintura, flexionou a perna, mirou a latinha e desceu a sola do pé sobre ela, mais lentamente e com menos força. Desta vez a latinha foi totalmente amassada, assumindo o feitio de um biscoito de lata.
     Com um ar de satisfação no rosto, o bêbado abaixou-se, apanhou a latinha, desceu uma mochila que trazia nas costas, que só neste momento me dei conta da sua existência, e depositou a latinha em seu interior. Ele colocou a mochila nas costas novamente e retomou o seu caminho cambaleante. Alguns metros à frente, ao pé de uma árvore, o bêbado abaixou-se e encontrou outra latinha errante. O processo recomeçou. E não é que na primeira tentativa o bêbado errou o pisão novamente!?. Para minha surpresa, ele errou o segundo pisão também. Mas, o terceiro pisão foi fatal. A latinha virou um biscoito de lata que foi recolhido à mochila.
     O bêbado continuou o seu caminho cambaleante e o perdi de vista, pois o ônibus seguiu em frente com a pista desimpedida. Não consegui saber se ocorreu algum acidente que justificasse o engarrafamento, pois não vi nenhum vestigio que o comprovasse. O bêbado absorvera completamente a minha atenção, me embriagara com o seu trabalho de caçar latinhas errantes. O mais interessante é que durante o restante da viagem fiquei absorto em pensamentos e hipóteses sobre a jornada do bêbado. Até onde ele seguiria naquela atividade de achar, amassar e recolher latinhas? Seria esse o seu trabalho? Será que ele recolhe as latinhas e as vende como fonte de renda? Qual a parte desta renda se transforma em consumo de bebida alcóolica? Seja como for, nunca me esqueci do bêbado e das latinhas errantes que ele encontrava pelo caminho. No final das contas o bêbado executava uma atividade de relevância para a sociedade e para ele. Agora, toda vez que vejo uma pessoa que cata materiais nas ruas e mesmo as pessoas em situação de rua, aquelas que vivem e moram nas ruas, fico imaginando qual é a atividade de recolhimento exercida por elas: papelão, jornais e papéis, garrafas pet, óleo de cozinha velho, garrafas e potes de vidro, latinhas de alumínio, ferro velho, entre outros materiais que as demais pessoas descartam e se transformam em lixo. Na verdade, do lixo de uns se tira a renda de outros e o mundo fica um pouco melhor para se viver, o que beneficia a todos. O fato do bêbado estar bêbado perdeu seu significado para mim. Não importa mais! O que realmente se tornou importante para mim foi a atividade, o trabalho que ele executa, estando bêbado ou não.