O Troco
Nelson engoliu o café da manhã com tal pressa e violência que sentiu queimar a garganta. Ainda tinha na mão a metade do pãozinho enquanto descia acelerado os cinco lances da escada do seu apartamento. Esperar a lerdeza do elevador nem pensar; não tinha tempo para isso. Atravessou o sinal aberto, deixando atrás de si algumas buzinadas e palavrões.
Duas quadras à frente já estava no ponto de ônibus super movimentado da Av. Presidente Vargas. A manhã começava, com o sol escaldante do verão carioca e ele, já de lenço na mão, secava o suor da testa e da careca, tirando e recolocando seus óculos de míope.
- Minha senhora, se importaria em me avisar quando for o 474? Muito obrigado, viu? -A dona, já meio idosa, mas não tão cegueta quanto ele, não respondeu, mas fez um “sim” com a cabeça.
Já olhava pela vigésima vez o relógio, quando foi alertado do ônibus que já vinha se aproximando.
Subiu espremido, cuidando para não ter as costelas do corpo magérrimo quebradas pelos que o empurravam junto à roleta do trocador. Tirou do bolso, depois de revisar e não encontrar dinheiro trocado, uma nota de 50 reais. O trocador, rapaz novo e até atraente, mas com cara e olheiras de quem saíra da farra direto para o trabalho, não perdeu tempo em dizer:
- Pode esquecer, amigo. A lei não nos obriga a trocar cinquenta reais.
- Não obriga, mas também não proíbe, correto?
- O senhor não tem menor?
- Desculpe a franqueza, mas, o senhor acha que, se eu tivesse menor eu daria uma nota de 50? - O jovem fez uma cara de tristeza. Devia estar por certo se sentindo um idiota, mas tentou se justificar, e sem cortesia.
- O senhor pode estar querendo me usar para trocar o seu dinheirinho; acha que sou banco, por acaso?
As atenções no interior do veículo já se voltavam para os dois, exclusivamente. O ônibus entrara na Rio Branco e os sinais luminosos, frequentes e demorados, deixavam alguns passageiros irritados, enquanto uns poucos fingiam dormir, porque isso seria impossível diante do lenga lenga que não cessava. O magricela se sentiu ofendido e deu o troco, embora quem estivesse querendo o troco era ele.
- Eu sei que o senhor não é banco, muito menos banqueiro; se fosse, não estaria sentado nesta cadeira. Por favor, o meu troco.
- Como quer o seu troco se ainda não me deu o dinheiro?
- Não seja por isso, aqui está o dinheiro.
- O amigo não entendeu, não posso trocar uma nota de cinquenta reais.
- Não pode ou não quer? - intrometeu-se na conversa uma menina, usando uniforme colegial.
- Muito bem, filha! -disse, sorrindo, a vítima - ainda bem que você não precisa passar por esse tipo de situação porque só usa o Rio Card.
- Exatamente - interveio o trocador - onde é que está o seu Rio Card? Por que não faz como a menininha?
- Porque sou um trabalhador autônomo. Mas, por que não responde à pergunta; não troca porque não pode ou porque não quer?
- É claro que é porque não quer -disse uma velhinha, num banco logo atrás - estou viajando desde que saímos do ponto de partida e já vi tantas notas passando pelas mãos desse sujeitinho que perdi a conta. Õ moço, troca logo o dinheiro desse menino, que eu quero ver se ainda tiro um cochilinho.
- Não adianta insistir, o troco máximo é para vinte reais.
- Muito bem. Melhor para mim: fico sem pagar a passagem e desço aqui pela porta da frente.
- Isto é que não! O senhor faça o favor de descer no próximo ponto -disse o trocador, sentindo-se desafiado e querendo mostrar autoridade.
- E quem vai me fazer descer?
- O fiscal, no último ponto da Rio Branco.
- Escuta aqui, meu amigo - disse um gorducho que se refestelava num dos bancos solitários, com a camisa branca semi aberta no peito, escorrendo suor e no lado onde batia o sol. - Eu já sei o final dessa história. Se fizer a gente mudar de ônibus por causa desse cara e de sua teimosia, eu processo sua empresa e faço você perder o emprego, tá falado? Aí! Alguém troca cinquenta reais pra quebrar o galho do magrinho aqui? - a resposta veio em coro e uníssona: Nãããããão! - bando de gente dura! -disse para si o grandalhão.
Mas, o rapaz não se intimidou. Comunicou o fiscal, que já vinha se aproximando. Foi, novamente o magricela convidado a descer. Como, mais uma vez se recusara e, não podendo tirá-lo a força, o jeito foi mesmo interromper a viagem. Todos desembarcaram, entre protestos e xingamentos. O gordo, de celular no ouvido, tratava de fazer a sua queixa a quem de direito a fim de tentar alterar a constituição. Todos ficaram no aguardo do próximo carro, que já vinha se aproximando.
O magrelo até tentara algumas barracas da Cinelândia para trocar a sua nota, mas sem sucesso àquela hora da manhã. Voltou para junto dos outros sob olhares de ódio e com medo de ser linchado. Um dos passageiros encostou nele, estendendo-lhe uma nota e algumas moedas, quantia exata a passagem.
- Tome; não precisa perder a sua hora. - O homem vestia-se elegantemente, com camisa, gravata e maleta social.
- O senhor presenciou a discussão? - perguntou Nelson, pegando e agradecendo pela gentileza.
- Sim, perfeitamente. Estava bem do seu lado o tempo todo; não me percebeu?
- Não... desculpe, estava muito nervoso. Mas, por que não fez isto lá dentro? Evitaria toda aquela confusão - quis saber Nelson, contemplando o sorriso do homem.
- Minha vida anda muito monótona, ultimamente. Estava precisando mesmo de um pouquinho de agitação para variar. Portanto, eu é quem devo agradecer pelo espetáculo.
O ônibus encostou e todos ingressaram, inclusive Nelson. Mas, fizeram questão de deixá-lo subir primeiro e, lógico, pagar a passagem.
Nelson engoliu o café da manhã com tal pressa e violência que sentiu queimar a garganta. Ainda tinha na mão a metade do pãozinho enquanto descia acelerado os cinco lances da escada do seu apartamento. Esperar a lerdeza do elevador nem pensar; não tinha tempo para isso. Atravessou o sinal aberto, deixando atrás de si algumas buzinadas e palavrões.
Duas quadras à frente já estava no ponto de ônibus super movimentado da Av. Presidente Vargas. A manhã começava, com o sol escaldante do verão carioca e ele, já de lenço na mão, secava o suor da testa e da careca, tirando e recolocando seus óculos de míope.
- Minha senhora, se importaria em me avisar quando for o 474? Muito obrigado, viu? -A dona, já meio idosa, mas não tão cegueta quanto ele, não respondeu, mas fez um “sim” com a cabeça.
Já olhava pela vigésima vez o relógio, quando foi alertado do ônibus que já vinha se aproximando.
Subiu espremido, cuidando para não ter as costelas do corpo magérrimo quebradas pelos que o empurravam junto à roleta do trocador. Tirou do bolso, depois de revisar e não encontrar dinheiro trocado, uma nota de 50 reais. O trocador, rapaz novo e até atraente, mas com cara e olheiras de quem saíra da farra direto para o trabalho, não perdeu tempo em dizer:
- Pode esquecer, amigo. A lei não nos obriga a trocar cinquenta reais.
- Não obriga, mas também não proíbe, correto?
- O senhor não tem menor?
- Desculpe a franqueza, mas, o senhor acha que, se eu tivesse menor eu daria uma nota de 50? - O jovem fez uma cara de tristeza. Devia estar por certo se sentindo um idiota, mas tentou se justificar, e sem cortesia.
- O senhor pode estar querendo me usar para trocar o seu dinheirinho; acha que sou banco, por acaso?
As atenções no interior do veículo já se voltavam para os dois, exclusivamente. O ônibus entrara na Rio Branco e os sinais luminosos, frequentes e demorados, deixavam alguns passageiros irritados, enquanto uns poucos fingiam dormir, porque isso seria impossível diante do lenga lenga que não cessava. O magricela se sentiu ofendido e deu o troco, embora quem estivesse querendo o troco era ele.
- Eu sei que o senhor não é banco, muito menos banqueiro; se fosse, não estaria sentado nesta cadeira. Por favor, o meu troco.
- Como quer o seu troco se ainda não me deu o dinheiro?
- Não seja por isso, aqui está o dinheiro.
- O amigo não entendeu, não posso trocar uma nota de cinquenta reais.
- Não pode ou não quer? - intrometeu-se na conversa uma menina, usando uniforme colegial.
- Muito bem, filha! -disse, sorrindo, a vítima - ainda bem que você não precisa passar por esse tipo de situação porque só usa o Rio Card.
- Exatamente - interveio o trocador - onde é que está o seu Rio Card? Por que não faz como a menininha?
- Porque sou um trabalhador autônomo. Mas, por que não responde à pergunta; não troca porque não pode ou porque não quer?
- É claro que é porque não quer -disse uma velhinha, num banco logo atrás - estou viajando desde que saímos do ponto de partida e já vi tantas notas passando pelas mãos desse sujeitinho que perdi a conta. Õ moço, troca logo o dinheiro desse menino, que eu quero ver se ainda tiro um cochilinho.
- Não adianta insistir, o troco máximo é para vinte reais.
- Muito bem. Melhor para mim: fico sem pagar a passagem e desço aqui pela porta da frente.
- Isto é que não! O senhor faça o favor de descer no próximo ponto -disse o trocador, sentindo-se desafiado e querendo mostrar autoridade.
- E quem vai me fazer descer?
- O fiscal, no último ponto da Rio Branco.
- Escuta aqui, meu amigo - disse um gorducho que se refestelava num dos bancos solitários, com a camisa branca semi aberta no peito, escorrendo suor e no lado onde batia o sol. - Eu já sei o final dessa história. Se fizer a gente mudar de ônibus por causa desse cara e de sua teimosia, eu processo sua empresa e faço você perder o emprego, tá falado? Aí! Alguém troca cinquenta reais pra quebrar o galho do magrinho aqui? - a resposta veio em coro e uníssona: Nãããããão! - bando de gente dura! -disse para si o grandalhão.
Mas, o rapaz não se intimidou. Comunicou o fiscal, que já vinha se aproximando. Foi, novamente o magricela convidado a descer. Como, mais uma vez se recusara e, não podendo tirá-lo a força, o jeito foi mesmo interromper a viagem. Todos desembarcaram, entre protestos e xingamentos. O gordo, de celular no ouvido, tratava de fazer a sua queixa a quem de direito a fim de tentar alterar a constituição. Todos ficaram no aguardo do próximo carro, que já vinha se aproximando.
O magrelo até tentara algumas barracas da Cinelândia para trocar a sua nota, mas sem sucesso àquela hora da manhã. Voltou para junto dos outros sob olhares de ódio e com medo de ser linchado. Um dos passageiros encostou nele, estendendo-lhe uma nota e algumas moedas, quantia exata a passagem.
- Tome; não precisa perder a sua hora. - O homem vestia-se elegantemente, com camisa, gravata e maleta social.
- O senhor presenciou a discussão? - perguntou Nelson, pegando e agradecendo pela gentileza.
- Sim, perfeitamente. Estava bem do seu lado o tempo todo; não me percebeu?
- Não... desculpe, estava muito nervoso. Mas, por que não fez isto lá dentro? Evitaria toda aquela confusão - quis saber Nelson, contemplando o sorriso do homem.
- Minha vida anda muito monótona, ultimamente. Estava precisando mesmo de um pouquinho de agitação para variar. Portanto, eu é quem devo agradecer pelo espetáculo.
O ônibus encostou e todos ingressaram, inclusive Nelson. Mas, fizeram questão de deixá-lo subir primeiro e, lógico, pagar a passagem.