Faz tanto tempo... A lua ainda era menina
Havia mel na boca da noite, no soalho, no chão,
no agasalho. Tudo era suor. Tudo respirava amor
como orvalho, doce orvalho derramado no coração.

 
 
 Nos Gerais de Minas, o sol dorme sobre o gigantesco  travesseiro das montanhas. Medroso, desperta sonolento  no balde de leite do vaqueiro e vai dourando de luz os campos, mata adentro  gerais afora. No topo da serra canta a seriema. Dorme a natureza embalada neste canto e o brilho suave de seu pranto faz-se  orvalho... Cláudio Manuel, meio baiano, meio mineiro, não esperava que um galo cantasse e levantasse outro galo o mesmo canto noutro terreiro. Poeta inventado de ser fazendeiro, ele parava encantado, e se encantava em uma poça d’água, apreciando uma borboleta auriverde que bate asas; faz que vai, faz que vem, volteia e pousa no dedo. Em sua rotina diária, Cláudio consumia pedaço de sol minguado cedo, e à tardinha, assentado na barriga de uma raiz que bebe no córrego. Ficava fios de hora olhando lambaris que deslizavam, escorrendo luz prateada em suas escamas. E perguntava interessado na resposta. “Por que a beleza das cores é tão passageira? Por que uma linda borboleta vive tão pouco? Mal sai do casulo e três meses depois evapora, entrega seu espírito de borboleta ao Criador e se vai. A vida se esvai.  Parece que a criatura tem natureza artificialmente postiça. Tudo descora lentamente e a cor da gente desaparece com os raios do último sol.”
Nas noites de lua clara a peonada se reunia no alpendre. A meninada acompanhava os pais, interessada em saber das estórias que Cláudio contava, recitando cordel nos acordes de sua viola. Aquele ano foi de poucas águas e a luta para salvar o gado parecia interminável. Levantava um animal aqui, caia outro ali. Levantava um ali, caia outro acolá... Até barrigueira pro animal ficar em pé, Cláudio fazia. Ele aprendeu a salvar gado nas grandes secas do Nordeste, dando papelão molhado e garapa de rapadura às reses mais fracas. Muita gente fazia isso e salvava parte do rebanho.  Quem não tinha papelão, oferecia galho de cacto sapecado e os animais babavam comendo churrasco de mandacaru, levemente queimado. E, mesmo morando em Minas onde as águas borbulham nas nascentes, nos anos de pouco chuva Cláudio se valia desse recurso.
— Papelão para  vaca parida? Tá ficando maluco? O pasto está minguado, o leite também, mas você pode comprar torta de algodão e dar ao gado.
— Nada não, mulher. Quero que o leite saia empacotado, como ovo de galinha.
— E a garrafada de rapadura? É para o leite sair adocicado?
— Sê besta animal ruminante! Rapadura é o melhor energético para levantar gado caído.
Não quis dizer que no Nordeste, ele mesmo comeu macambira na grande seca de 1932. Nem que era um bufão, um saltimbanco sem tablado, como milhares de retirantes nordestinos que abandonam suas terras, por causa da seca. E, lembrando-se dessas coisas, dedilhava a viola, procurando afiná-la com a toada que ouvia quando era novo. Tírú-lírú-lírú, lírú- lírú lírú-lão. Tírú-lírú-lírú, lírú-lírú lírú-lão:
 
A seca de 32 não foi culpada sozinha, porque desde 27 que ano bom já não vinha.
 
A lua já era velha e o repertório de Cláudio não se esgotava.
Inté outro dia, cumpade.
— Até...
Muitas vozes respondiam: Inté...inté...
Tudo eram lembranças da fazenda Campo Grande que Corina não queria esquecer. Ela nunca esqueceu a vida no campo: a caça à onça e as noites de lua clara no alpendre do casario...