A praça Afonso Pena e adjacências estavam totalmente inundadas. Vez por outra a explosão de um transformador da Light lançava fagulhas iluminando, por um instante, um pequeno trecho da rua Doutor Satamini. Enquanto isso, e em vão, Androceu tentava pegar um táxi que passava na Tijuca com água quase entrando pelas portas. Ninguém parava para prestar socorro. Aflitos, os taxistas tentavam salvar primeiro suas almas. Pois foi naquela noite escura. Naquela noite de trevas que dois homens encapuzados o abordaram.
— Ei, você profanou meu santuário —, dizia um deles com a voz arrastada, tropeçando nas palavras como um bêbado. Ele ouviu só isto, antes de sentir o nariz tapado por um lenço umedecido em éter. Os homens fizeram o serviço. Os dois homens encapuzados fizeram o serviço e largaram a vítima em frente a um hospital público. Três semanas depois, e já curado da castração, novamente Androceu estava pronto para servir o chefe, vendendo jogo do bicho.
Sentado em uma cadeira de balanço, Martiniano contempla um exemplar do ciclo das Ninféias assinado por Monet. Fuma charuto cubano e arquiteta planos para comprar o amor da professorinha.
— Vá vender um bilhete àquela professora. Pegue o fusca, fique nas proximidades da escola o tempo que for preciso, disse o bicheiro.
— Professor não arrisca a sorte em jogo do bicho!
— Conversa homem! Faça o jogo dela para o sorteio da tarde e me passe os números jogados. Sei o que fazer.
Acanhado, Androceu não abordou a diretora, mas, ela o reconheceu.
— O senhor me emprestou gasolina não foi mesmo?
— Sim, sim!
E contou a ela as dores do seu coração. A vida sofrida, o trabalho exaustivo vendendo jogo do bicho... Enfim, a vida escrava que levava numa mansão alheia na Barra da Tijuca.
— O túnel do tempo só existe em tua mente — disse Chanana. Não podes mudar fatos passados, mas, podes livrar-se de algumas lembranças dolorosas, colocando uma redoma em torno delas, ou criando uma ponte, um atalho. Não podes apagar tua história, mas podes reescrevê-la. Tenho formação em Psicologia e posso ajudá-lo... Por que não cobrou a gasolina?
— O carro é do patrão.
— O fuscão preto ou a Ferrari?
— Os dois.
—Quero jogar no gato e no dragão.
— Dragão não faz parte do jogo do bicho. E não jogue no gato que talvez você não ganhe. Jogue uma milhar no primeiro prêmio e se acertar, o patrão paga na hora.
Jogou e antes das oito da manhã do dia seguinte, sorridente, o cambista a procurou na escola.
— A senhora ganhou o prêmio grande, seu Martiniano quer fazer, pessoalmente, o pagamento. Posso levá-la ao escritório dele.
— Esta é a felizarda — disse Androceu olhando para o chão.
— Olha só!... Deus ajudou e você ganhou sozinha o prêmio maior.
— Deus não interfere em jogos. Embora não seja pecado ter muito dinheiro, Deus não interfere em jogo. Muita gente faz promessas para ganhar na loteria dizendo que dará boa parte aos pobres. Dá nada! Se ganhar, joga tudo fora, mas não dá nada a ninguém. Fica mais sovina e mesquinho do que antes. Se, realmente ganhei um bom prêmio, e antes que meu ouro escorra entre os dedos, quero dividi-lo com Androceu.
— Então se case com ele, respondeu o bicheiro como se batesse o martelo da sentença.
As palavras de Martiniano de Castro soaram como uma profecia e sob o pretexto de tratamento psicológico, os encontros de Androceu com a Chanana se amiudaram como pingos de chuva fina a escorrer na calha do tempo. Logo, comemoraram as bodas de cobre e a aproximação com os familiares dela foi uma consequência.
— Tio, — disse Talita apontando para a Bíblia — vou ensinar uma técnica que aprendi no Grupo de Oração. Mas a Bíblia não pode estar viciada.
— Que é isso, menina! O viciado aqui sou eu.
— Não é isso, tio. A Bíblia não ser viciada, significa que não pode ter nenhum marcador dentro dela, senão, vai sempre cair naquela mesma página. A dinâmica consiste em abrir aleatoriamente e ler o primeiro trecho que se lhe saltar aos olhos.
Durante sete dias seguidos, Androceu punha a Bíblia sobre a mesa com a lombada virada para baixo, segurava a capa com a mão esquerda e com a direita, a contracapa. Por último, soltava o miolo que se abria como uma sanfona no capítulo três de Oséias.
O Senhor disse-me: Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo, e que foi adúltera, pois é assim que o Senhor ama os filhos de Israel, embora se voltem para outros deuses e gostem das tortas de uvas.
— Tente de novo — disse Talita.
— Não devo desafiar a Deus, mas...
Refez o movimento como em uma roleta-russa e pela oitava vez, recaiu na mesma página:
Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo e que foi adúltera...
Empalideceu.
— Assustado, tio?
—Não! Apenas sinto enjoo.
— O Senhor leu a nota de rodapé?
— Rodapé?
— Rodapé da Bíblia.
—Li não!
— Pois é, a mulher adúltera é a Igreja, infiel na aliança com Deus.
—Ah!...
Androceu adiou por longos anos o compromisso que fez com a mulher de ingressar na Associação dos Alcoólatras Anônimos. Agora, sua pele ressecada e as manchas amareladas nos olhos, sinalizavam algum tipo de complicação hepática. Ele buscou por recursos médicos tardiamente. Não tinha mais saúde para carregar a harpa de quarenta e sete cordas que pesava sobre seus ombros. Amarelou e despencou como um fruto peco de uma mangueira velha.
Era dois de novembro e seu pobre corpo descansou como rico em um ataúde de cedro. Havia poucos amigos e muitos curiosos na sala onde um caixão repousava sobre quatro suportes de prata. Velório sem choro, nem lamentações, apenas o burburinho de oração que se misturava com os cochichos de curiosos. Pessoas que nem se conheciam, cumprimentam-se com olhar piedoso e em pouco tempo, conversam como se fossem velhos amigos.
— Morreu novo.
— Menos de cinquenta, e deixou uma viúva bem arranjada.
—Onde esse pobretão conseguiu dinheiro?
— Dizem que Martiniano de Castro visita com muita frequência a casa dos moreiras.
— Androceu Moreira. Isso é nome de gente?
— Com todo respeito, será por que ele bebia tanto?
— Os filhos da Candinha comentam que o falecido ficou sem os grãos porque se meteu com a mulher do bicheiro, e, sobrevivendo, recebeu em troca do silêncio uma casa passada em seu nome com tinta e papel. Só fazia sala. Oito anos de casado e nunca fez filho na mulher.
A sala de velório da Santa Casa ficou em silêncio e os rostos antes descontraídos tomaram feições sérias. A viúva deixou cair uma lágrima minguada, abraçou o sacerdote e disse baixinho: “Ele se foi, padre! Ele se foi...” As mulheres entoaram um cântico que os homens acompanhavam com sensível atraso. A viúva passou um lenço no rosto...
— Por favor, padre Davi, faça as recomendações.
– A alma de Androceu, disse o padre, encontrou repouso. Nesta caminhada, estamos apenas de passagem e acreditamos que o Senhor nosso Deus edificou para nós uma morada no Céu. No mundo, muitos acumulam grandes fortunas, muitas vezes ganhadas ilicitamente. Mas este homem viveu a simplicidade dos humildes e para ganhar o pão, começou a vida vendendo bilhetes de loteria, tornando-se mais tarde um empresário bem-sucedido. Finalmente, este peregrino encontrou abrigo em boa estalagem.
Padre Davi aspergiu o caixão com água benta. Olhou de soslaio para Martiniano de Castro e se retirou. Capciosamente, disse quase em sussurro: “outro dia passarei aqui para ver como está minha paroquiana”.
— Ei, você profanou meu santuário —, dizia um deles com a voz arrastada, tropeçando nas palavras como um bêbado. Ele ouviu só isto, antes de sentir o nariz tapado por um lenço umedecido em éter. Os homens fizeram o serviço. Os dois homens encapuzados fizeram o serviço e largaram a vítima em frente a um hospital público. Três semanas depois, e já curado da castração, novamente Androceu estava pronto para servir o chefe, vendendo jogo do bicho.
Sentado em uma cadeira de balanço, Martiniano contempla um exemplar do ciclo das Ninféias assinado por Monet. Fuma charuto cubano e arquiteta planos para comprar o amor da professorinha.
— Vá vender um bilhete àquela professora. Pegue o fusca, fique nas proximidades da escola o tempo que for preciso, disse o bicheiro.
— Professor não arrisca a sorte em jogo do bicho!
— Conversa homem! Faça o jogo dela para o sorteio da tarde e me passe os números jogados. Sei o que fazer.
Acanhado, Androceu não abordou a diretora, mas, ela o reconheceu.
— O senhor me emprestou gasolina não foi mesmo?
— Sim, sim!
E contou a ela as dores do seu coração. A vida sofrida, o trabalho exaustivo vendendo jogo do bicho... Enfim, a vida escrava que levava numa mansão alheia na Barra da Tijuca.
— O túnel do tempo só existe em tua mente — disse Chanana. Não podes mudar fatos passados, mas, podes livrar-se de algumas lembranças dolorosas, colocando uma redoma em torno delas, ou criando uma ponte, um atalho. Não podes apagar tua história, mas podes reescrevê-la. Tenho formação em Psicologia e posso ajudá-lo... Por que não cobrou a gasolina?
— O carro é do patrão.
— O fuscão preto ou a Ferrari?
— Os dois.
—Quero jogar no gato e no dragão.
— Dragão não faz parte do jogo do bicho. E não jogue no gato que talvez você não ganhe. Jogue uma milhar no primeiro prêmio e se acertar, o patrão paga na hora.
Jogou e antes das oito da manhã do dia seguinte, sorridente, o cambista a procurou na escola.
— A senhora ganhou o prêmio grande, seu Martiniano quer fazer, pessoalmente, o pagamento. Posso levá-la ao escritório dele.
— Esta é a felizarda — disse Androceu olhando para o chão.
— Olha só!... Deus ajudou e você ganhou sozinha o prêmio maior.
— Deus não interfere em jogos. Embora não seja pecado ter muito dinheiro, Deus não interfere em jogo. Muita gente faz promessas para ganhar na loteria dizendo que dará boa parte aos pobres. Dá nada! Se ganhar, joga tudo fora, mas não dá nada a ninguém. Fica mais sovina e mesquinho do que antes. Se, realmente ganhei um bom prêmio, e antes que meu ouro escorra entre os dedos, quero dividi-lo com Androceu.
— Então se case com ele, respondeu o bicheiro como se batesse o martelo da sentença.
As palavras de Martiniano de Castro soaram como uma profecia e sob o pretexto de tratamento psicológico, os encontros de Androceu com a Chanana se amiudaram como pingos de chuva fina a escorrer na calha do tempo. Logo, comemoraram as bodas de cobre e a aproximação com os familiares dela foi uma consequência.
— Tio, — disse Talita apontando para a Bíblia — vou ensinar uma técnica que aprendi no Grupo de Oração. Mas a Bíblia não pode estar viciada.
— Que é isso, menina! O viciado aqui sou eu.
— Não é isso, tio. A Bíblia não ser viciada, significa que não pode ter nenhum marcador dentro dela, senão, vai sempre cair naquela mesma página. A dinâmica consiste em abrir aleatoriamente e ler o primeiro trecho que se lhe saltar aos olhos.
Durante sete dias seguidos, Androceu punha a Bíblia sobre a mesa com a lombada virada para baixo, segurava a capa com a mão esquerda e com a direita, a contracapa. Por último, soltava o miolo que se abria como uma sanfona no capítulo três de Oséias.
O Senhor disse-me: Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo, e que foi adúltera, pois é assim que o Senhor ama os filhos de Israel, embora se voltem para outros deuses e gostem das tortas de uvas.
— Tente de novo — disse Talita.
— Não devo desafiar a Deus, mas...
Refez o movimento como em uma roleta-russa e pela oitava vez, recaiu na mesma página:
Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo e que foi adúltera...
Empalideceu.
— Assustado, tio?
—Não! Apenas sinto enjoo.
— O Senhor leu a nota de rodapé?
— Rodapé?
— Rodapé da Bíblia.
—Li não!
— Pois é, a mulher adúltera é a Igreja, infiel na aliança com Deus.
—Ah!...
Androceu adiou por longos anos o compromisso que fez com a mulher de ingressar na Associação dos Alcoólatras Anônimos. Agora, sua pele ressecada e as manchas amareladas nos olhos, sinalizavam algum tipo de complicação hepática. Ele buscou por recursos médicos tardiamente. Não tinha mais saúde para carregar a harpa de quarenta e sete cordas que pesava sobre seus ombros. Amarelou e despencou como um fruto peco de uma mangueira velha.
Era dois de novembro e seu pobre corpo descansou como rico em um ataúde de cedro. Havia poucos amigos e muitos curiosos na sala onde um caixão repousava sobre quatro suportes de prata. Velório sem choro, nem lamentações, apenas o burburinho de oração que se misturava com os cochichos de curiosos. Pessoas que nem se conheciam, cumprimentam-se com olhar piedoso e em pouco tempo, conversam como se fossem velhos amigos.
— Morreu novo.
— Menos de cinquenta, e deixou uma viúva bem arranjada.
—Onde esse pobretão conseguiu dinheiro?
— Dizem que Martiniano de Castro visita com muita frequência a casa dos moreiras.
— Androceu Moreira. Isso é nome de gente?
— Com todo respeito, será por que ele bebia tanto?
— Os filhos da Candinha comentam que o falecido ficou sem os grãos porque se meteu com a mulher do bicheiro, e, sobrevivendo, recebeu em troca do silêncio uma casa passada em seu nome com tinta e papel. Só fazia sala. Oito anos de casado e nunca fez filho na mulher.
A sala de velório da Santa Casa ficou em silêncio e os rostos antes descontraídos tomaram feições sérias. A viúva deixou cair uma lágrima minguada, abraçou o sacerdote e disse baixinho: “Ele se foi, padre! Ele se foi...” As mulheres entoaram um cântico que os homens acompanhavam com sensível atraso. A viúva passou um lenço no rosto...
— Por favor, padre Davi, faça as recomendações.
– A alma de Androceu, disse o padre, encontrou repouso. Nesta caminhada, estamos apenas de passagem e acreditamos que o Senhor nosso Deus edificou para nós uma morada no Céu. No mundo, muitos acumulam grandes fortunas, muitas vezes ganhadas ilicitamente. Mas este homem viveu a simplicidade dos humildes e para ganhar o pão, começou a vida vendendo bilhetes de loteria, tornando-se mais tarde um empresário bem-sucedido. Finalmente, este peregrino encontrou abrigo em boa estalagem.
Padre Davi aspergiu o caixão com água benta. Olhou de soslaio para Martiniano de Castro e se retirou. Capciosamente, disse quase em sussurro: “outro dia passarei aqui para ver como está minha paroquiana”.