Reminiscências

Já vai longe o dia em que essas conversas aconteciam.

Era sempre assim, naquela casa de estuque, com partes do reboco caindo e portas feitas de cipó.

Bastava escurecer como se de lá, de um outro lado, um movimento começasse. Dois ou três rapazes, Moacir, Rossi e José, se movimentavam para a minha casa de infância e, muito comumente também alguma outra pessoa ou casal de visitantes.

Era um movimento concomitante - o movimento da vinda dessas pessoas com o movimento da minha avó, que também se movimentava para acender a lamparina e colocá-la bem no meio do chão da sala, de modo que clareasse para todos nós que sentávamos em volta a fim de começar a conversar.

A sala não tinha móveis, somente dois bancos antigos nos quais as visitas e os homens se sentavam, enquanto minha mãe, minha avó e as crianças, eu e meu irmão Valter, nos sentávamos no chão.

As duas faziam artesanato. Surrão ou chapéu, às vezes fiavam. Eu e meu irmão ficávamos brincando com o fogo da lamparina ou subindo no colo delas e atrapalhando o serviço que elas faziam.

Após algum tempo outro movimento começava, era minha avó se levantando para fazer o café. O café no substantivo definido, porque não havia variação. Era certo acontecer. Fazia parte do ritual. Todos nós tomávamos um gole oferecido por ela e nesse começo de noite palavras caíam como gotas e iam tecendo o conteúdo da vida naquele lugar onde nada acontecia e que para mim tudo parecia acontecer.

E acontecia mesmo, principalmente por causa daquelas conversas que eu presenciava - essas conversas faziam acontecer.

Ali se falava de tudo, da vida e da morte, do bem e do mal. Era a filha ou o filho do outro, nosso parente de sangue ou de afeto, que não tinha feito algo muito correto ou algo grandioso... viajado, ganhado dinheiro, voltado e se estabelecido.

Mudado o rumo da sua história. Falas cheias de orgulho, mesmo em meio à pobreza.

No caso do suposto incorreto, não era um falar mal, era uma mistura de preocupação, crítica, compreensão, cuidado e regra de bem viver. Não devia ser assim. Se tivesse sido desse ou daquele jeito teria sido melhor e fulano ou beltrano não estaria nessa situação.

Era a colheita que fora boa e se celebrava e, também se não fora se falava do mesmo modo. Lamentava-se e pedia-se ajuda a Deus para atravessar sem muito sofrimento até a próxima colheita.

Num caso ou no outro, a questão era a avaliação da vida e a reorganização para o futuro que era certo, viria.

Eram os sonhos e as desavenças da vida - palavras da minha avó, que eram faladas repetidas vezes, dia após dia e, que na época, eu sentia apenas. Hoje, eu sei que serviam para encaminhar a vida de uma forma total. Ninguém analisava, apenas narrava. Ninguém respondia, apenas ouvia ou falava daquele assunto ao seu modo e com os sentimentos que compartilhasse naquele momento.

Pois, amar e viver eram a mesma a coisa. Amava-se na hora em que se vivia.

Eram muitos os assuntos e envolviam sempre as mesmas pessoas, que dia após dia, se visitavam rapidamente, ao anoitecer, porque a labuta do dia seguinte pedia que cedo deitassem para cedo levantar.

Era interessante, intrigante mesmo, a liberdade daquelas pessoas. Não existia formalidade para sair da roda, era só levantar, dar boa noite e sair para ir embora, mato à dentro até cada um chegar a sua casa, que não era muito longe.

Era comum aqueles três jovens serem os primeiros a levantar para sair, um de cada vez e há seu tempo.

Além da conversa, o café da dona Altina nos unia, esta roda se fazia em todas as casas da região, naquele mesmo horário e noite após noite. Era uma gente que gostava e confiava na palavra. Às vezes íamos à casa de alguém, mas era raro, porque tínhamos nossa roda de conversa e a rotina daquele fazer não podia ser quebrada. Naquele lugar onde a imprevisibilidade da natureza é constante, não havia imprevisibilidade nas pessoas. E, assim passávamos nossas noites, que eram curtas... pela ausência do relógio. Ausência que nos fazia saber que algum tempo havia transcorrido e assim esse tempo não medido se transformava em noite alta e tínhamos que dormir. Mas, não antes da conversa chegar à sua culminância, aquilo que enaltecia a coragem (ou o medo) dos homens e que as mulheres também presenciava, afirmando a experiência corajosa dos seus próprios maridos, as almas do outro mundo ou as feras perigosas.

Havia de tudo nessas conversas. Animais da natureza ou da imaginação, onças, tigres, enormes tamanduás, dragões e lobisomens e a terrível alma do outro mundo.

Na roda de conversa da minha casa de infância todos já tinham visto as almas do outro mundo, almas sofridas, acorrentadas e gritando por salvação, pois, é claro, o motivo do sofrimento delas era alguma falta cometida durante a vida terrena, como a avareza, a soberba, a luxuria e a desobediência, e para quem tinha cometido esses pecados o castigo era líquido e certo e, que se não fosse nesse mundo seria no outro.

Entre aos que tiveram contato com as almas penadas o mais experimentado era o meu avô, claro! Que contava a sua versão com requinte de detalhes, pequenos ruídos iniciais, arrastar de correntes, ranger de dentes, uivo de cães e... para a minha desgraça, um desfecho, sempre com qualquer coisa de difuso. Nunca ficava claro para que eu pudesse compreender e me defender dos efeitos dessas histórias. Só me restava o medo. Muito medo e sofrimento na hora de dormir, sempre a espera do ritual que confirmaria a história do meu avô.

Tempos bons, tempos de infância encantada porque vivida meio a gente sacralizada.

(de Assis Furtado - 2010)

Francisca de Assis Rocha Alves
Enviado por Francisca de Assis Rocha Alves em 26/11/2012
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