Olavo da Penha Cazumbá (heterônimo)
 
Quando a notícia começou a se espalhar na zona rural de Salvador, no dia 15 de maio de 1888, uma terça-feira, eu saí logo cedo, a fim de ver as primeiras comemorações pela libertação dos escravos, que tinha sido assinada no Rio de Janeiro, dois dias antes.
Botei o terno branco de linho, o chapéu de baeta, o sapato de bico e peguei uma das primeiras carroças que rumaram da floresta de São Bartolomeu para a Rua da Alfândega (hoje Praça Cayru).
Quando cheguei lá, tinha tanta gente gritando, chorando, abraçando, que eu fiquei aturdido. Logo, logo, eu não me aguentei e comecei a chorar e a gritar e a pular também. E olhe que eu não era de me emocionar. Tinha o coração de ferro, pra não sofrer, pra não morrer no tronco da tristeza. Mas a energia na área estava demais, envolvente, contagiante. Discursos, cantorias,  jongos, danças de todo tipo, eu nunca tinha sentido algo como aquilo. Parece que com a libertação definitiva dos negros, houve também a libertação de uma coisa que vivia presa no coração da gente, uma coisa indefinível, que a gente botou pra fora em grandes explosões de risos, choros e gritarias estridentes. É como se extravasássemos por nós e por todos os nossos antepassados, desde os que vieram da África nos primeiros navios negreiros. Aquela doideira contaminou a todos, inclusive a muitos brancos que estavam por lá também e que alguns negros mais libertos faziam questão de saudar olhando nos olhos. Só quem também viveu aquilo tudo é que pode entender o que eu estou tentando dizer.
Saí de lá já no fim da tarde, e fiz questão de voltar andando, por mais de três léguas, junto com uma turma, fazendo algazarras e batucando o tempo inteiro.
Chegando em casa, minha primeira providência foi espanar logo um retrato desenhado da minha falecida mulher,  Danuwa, que tinha vindo do Império do Benin e que tinha nos despertado a consciência libertária muito tempo antes. Em seguida, lixei e envernizei a pequena escultura de Zumbi, o grande inspirador de nossas lutas. Ambos não saíam de cima da cristaleira. 
Foi uma mudança incrível na minha vida. Nunca esquecerei aquelas sensações, ainda que tenham cessado depois de alguns dias, com a dureza da nova realidade. Mas, mesmo quando começaram os grandes problemas de sobrevivência para os negros, eu, embora já fosse liberto muito tempo antes do 13 de maio (ainda que vivesse na clandestinidade), agora só vinha para o comércio no meu terno de linho, olhando de cabeça erguida para todo lado, sorrindo e saudando a todos garbosamente, parecendo um bacharel.
 
 
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 23/11/2012
Reeditado em 23/11/2012
Código do texto: T4000916
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