O CANINO DOURADO
Juro que seus lábios eram trêmulos e as lágrimas flagrantes!
A meus pés, em petição de miséria, ele desafiava a incredulidade de meus olhos, o outrora amimado e abonado Valentim Gusmão!
Em plena e fria sarjeta, carne e osso, (mais ossos que propriamente carnes) era a imagem da decadência e da piedade: vestes rotas, descalço, barba longa e grisalha por fazer entremeava ao cabelo desalinhado, moldura da face visivelmente tristonha e acabada. A vergonha, embora tentada ocultar naquela pobre face, saltava-lhe, entretanto, na expressão a quem o reconhecesse.
Difícil de acreditar --- meus amigos --- mas acabei me convencendo pelo canino dourado.
Diga-se o último remanescente de poderosa oligarquia que em áureos tempos exibia orgulhoso o dentinho reluzente de ouro em seus sorrisos esbanjadores, constantes, prévias estudadas e previstas para mostrar a preciosa incrustação aos adversários valorosos; o mimo, contudo, não equivalia tão somente a poucos gramas do precioso metal; para si e aos adversários deveria representar o brasão da força política e econômica da família Gusmão. O poder era para ver-se nele, o pequeno dente dourado!
Consolidado o poder, o clã viu no dente canino --- símbolo do predador, da força --- a representação ideal para identificar a posição dominante da família. Convencionou-se, pois, necessário, cada macho recobrisse o dente com fina camada de ouro. O ouro, símbolo do poder, símbolo da riqueza, a partir de então, símbolo dos Gusmãos!
Pois bem; varão único, Valentim viveu ao lado das irmãs na casa paterna assistindo o crescimento do domínio político e da prosperidade econômica do pai e da parentalha ao redor; todavia, eximia-se empregar seus esforços pessoais a contribuir para isso.
Paparrotão, mantinha a crença no poder e no dinheiro infindável; novos tempos e novos personagens jamais viriam abalar e a mudar as conquistas no tabuleiro das ações locais --- acreditava.
Instado, certa feita a estudar, teria replicado ao pai: "O meu tempo requer diversão, prazeres... escola pra mim ocupa lugar!"
Dito e feito. Longe das balizas da disciplina, a linha da devassidão e dos prazeres mundanos ele, em sua ânsia de bem viver --- único e exclusivo objetivo --- já a consumira toda; a linha que poderia levá-lo à retidão e, consequentemente, à formação íntegra do caráter ele, deliberado, a costurara nos bolsos traseiros do desdém e do ócio, indiferente ao destino de seu futuro. Cresceu assim, acostumando o corpo desde a manhã aos sapatos folgados e as meias frouxas, e, em benefício do espírito, nada que o fizesse genuflexo, alheio sequer a brevíssimas jaculatórias para não cansar os lábios; por essas e por outras causas Valentim veio a se transformar num sujeito dado a usar uma máscara no rosto e a trazer várias delas disponíveis às mãos, trocando-as ao sabor das conveniências, indiferente aos apertos dos constrangimentos. Um homem que não se lhe convinha refletir, tampouco desculpar-se ou arrepender-se.
Nada o alertava. À sua volta, conviviam belas mulheres, bebidas finas em profusão e jogos de azar em desregradas farras homéricas, formavam o quadro e o contexto histórico do qual Valentim deixou-se envolver, preso pateticamente nessa combinação festiva e inebriante dos sentidos, indutora, quando não da ruína patrimonial , senão também da decadência moral que ano após ano se prolongava no desfrute e encurtava nos prazos de realização. Ditava e reinava a extravagância.
Indiferente a tudo, o tempo passava inclemente; com ele, a rotina lhe fez bater na alma a exaustão das práticas diárias dos folguedos e das liberalidades; a vida, em si, então passou a lhe correr tão insossa quanto a um jogo de cartas sem dinheiro e sem parceiros, posto que ela lhe fora dada e custeada em todo o seu curso isenta dos sacrifícios e dos méritos próprios, concluindo que o cultivo de tal vivência, longe desses princípios elementares, não só traz o desvalor aos seus bens morais, acentuadamente aos materiais, além de penalizar o homem na sua coragem de lutar para reconquistá-los; e pior: enseja levá-lo a miséria, pois o cacife, nestas condições, tende a aumentar sumamente para atender a ânsia do prazer e da aventura sabidamente saturada e monótona. Foi o que se deu, precipitando-o na desventura.
Os desígnios do alto são insondáveis. A exemplo da vida ociosa, desvairada e perdulária vivida pelo Valentim, muitos inexplicavelmente que viveram vidas semelhantes levou para o túmulo as lembranças do sucesso e do gozo mundanos na melhor e na mais tranqüila das consciências, isentos à expiação. Pelo visto o herdeiro dos Gusmãos não terá a mesma sorte.
Quarenta anos longe da cidade eu estava de volta.
Olhando-me de frente, moveu-se na calçada estendendo-me a mão em busca do adjutório. Não me reconhecera nem fiz questão para tal; sua humilhação já era bastante.
Passei-lhe a esmola. No agradecimento pude ver que o canino dourado ainda brilhava em sua boca, alheio à penúria que o dono levava.
Saindo dali imaginei: “Estranhas as voltas que a vida dá!”
A meus pés, em petição de miséria, ele desafiava a incredulidade de meus olhos, o outrora amimado e abonado Valentim Gusmão!
Em plena e fria sarjeta, carne e osso, (mais ossos que propriamente carnes) era a imagem da decadência e da piedade: vestes rotas, descalço, barba longa e grisalha por fazer entremeava ao cabelo desalinhado, moldura da face visivelmente tristonha e acabada. A vergonha, embora tentada ocultar naquela pobre face, saltava-lhe, entretanto, na expressão a quem o reconhecesse.
Difícil de acreditar --- meus amigos --- mas acabei me convencendo pelo canino dourado.
Diga-se o último remanescente de poderosa oligarquia que em áureos tempos exibia orgulhoso o dentinho reluzente de ouro em seus sorrisos esbanjadores, constantes, prévias estudadas e previstas para mostrar a preciosa incrustação aos adversários valorosos; o mimo, contudo, não equivalia tão somente a poucos gramas do precioso metal; para si e aos adversários deveria representar o brasão da força política e econômica da família Gusmão. O poder era para ver-se nele, o pequeno dente dourado!
Consolidado o poder, o clã viu no dente canino --- símbolo do predador, da força --- a representação ideal para identificar a posição dominante da família. Convencionou-se, pois, necessário, cada macho recobrisse o dente com fina camada de ouro. O ouro, símbolo do poder, símbolo da riqueza, a partir de então, símbolo dos Gusmãos!
Pois bem; varão único, Valentim viveu ao lado das irmãs na casa paterna assistindo o crescimento do domínio político e da prosperidade econômica do pai e da parentalha ao redor; todavia, eximia-se empregar seus esforços pessoais a contribuir para isso.
Paparrotão, mantinha a crença no poder e no dinheiro infindável; novos tempos e novos personagens jamais viriam abalar e a mudar as conquistas no tabuleiro das ações locais --- acreditava.
Instado, certa feita a estudar, teria replicado ao pai: "O meu tempo requer diversão, prazeres... escola pra mim ocupa lugar!"
Dito e feito. Longe das balizas da disciplina, a linha da devassidão e dos prazeres mundanos ele, em sua ânsia de bem viver --- único e exclusivo objetivo --- já a consumira toda; a linha que poderia levá-lo à retidão e, consequentemente, à formação íntegra do caráter ele, deliberado, a costurara nos bolsos traseiros do desdém e do ócio, indiferente ao destino de seu futuro. Cresceu assim, acostumando o corpo desde a manhã aos sapatos folgados e as meias frouxas, e, em benefício do espírito, nada que o fizesse genuflexo, alheio sequer a brevíssimas jaculatórias para não cansar os lábios; por essas e por outras causas Valentim veio a se transformar num sujeito dado a usar uma máscara no rosto e a trazer várias delas disponíveis às mãos, trocando-as ao sabor das conveniências, indiferente aos apertos dos constrangimentos. Um homem que não se lhe convinha refletir, tampouco desculpar-se ou arrepender-se.
Nada o alertava. À sua volta, conviviam belas mulheres, bebidas finas em profusão e jogos de azar em desregradas farras homéricas, formavam o quadro e o contexto histórico do qual Valentim deixou-se envolver, preso pateticamente nessa combinação festiva e inebriante dos sentidos, indutora, quando não da ruína patrimonial , senão também da decadência moral que ano após ano se prolongava no desfrute e encurtava nos prazos de realização. Ditava e reinava a extravagância.
Indiferente a tudo, o tempo passava inclemente; com ele, a rotina lhe fez bater na alma a exaustão das práticas diárias dos folguedos e das liberalidades; a vida, em si, então passou a lhe correr tão insossa quanto a um jogo de cartas sem dinheiro e sem parceiros, posto que ela lhe fora dada e custeada em todo o seu curso isenta dos sacrifícios e dos méritos próprios, concluindo que o cultivo de tal vivência, longe desses princípios elementares, não só traz o desvalor aos seus bens morais, acentuadamente aos materiais, além de penalizar o homem na sua coragem de lutar para reconquistá-los; e pior: enseja levá-lo a miséria, pois o cacife, nestas condições, tende a aumentar sumamente para atender a ânsia do prazer e da aventura sabidamente saturada e monótona. Foi o que se deu, precipitando-o na desventura.
Os desígnios do alto são insondáveis. A exemplo da vida ociosa, desvairada e perdulária vivida pelo Valentim, muitos inexplicavelmente que viveram vidas semelhantes levou para o túmulo as lembranças do sucesso e do gozo mundanos na melhor e na mais tranqüila das consciências, isentos à expiação. Pelo visto o herdeiro dos Gusmãos não terá a mesma sorte.
Quarenta anos longe da cidade eu estava de volta.
Olhando-me de frente, moveu-se na calçada estendendo-me a mão em busca do adjutório. Não me reconhecera nem fiz questão para tal; sua humilhação já era bastante.
Passei-lhe a esmola. No agradecimento pude ver que o canino dourado ainda brilhava em sua boca, alheio à penúria que o dono levava.
Saindo dali imaginei: “Estranhas as voltas que a vida dá!”