A longa seca de 1976 na microrregião de Jeremoabo, sertão da Bahia, forçou a partida de dezenas de famílias de comunidades rurais castigadas pelo rigor da estiagem. Rumaram para muitas cidades grandes, inclusive Salvador. Na capital do estado, algumas delas conseguiram permissão para se alojar por algum tempo sob as marquises do estádio da Fonte Nova, no lado detrás, o que fica rente com a encosta do bairro Jardim Baiano. Instalaram-se onde os soteropolitanos e particularmente os torcedores dos times no campeonato local não os poderiam ver. Algumas famílias ajuntaram-se em grupos a menos de dez metros uns dos outros. Havia cinco grupos nas imediações. Teriam que voltar para suas terras após o verão, ou arranjar outros destinos.
RETRANCA DE CÁ
Maria, do povoado santabrigidense de Espinho, confidenciou para Dona Zefa, sua avó:
- Tem um hómi ali, da turma de Araticum, que tá mispiano...
Dona Zefa estranhou:
- E é? Oxente, minina! Tu tá doida? Quem é que vai ispiá in tu?
- Ele tá ispiano, sim! – insistiu Maria. – Já cravou os zói umas duas vêis pra riba d’eu.
- Nadonde tá ele? – Quis saber Dona Zefa.
- É aquele cacunda que todo dia vai pescá no dique do Tororó... Ói ele lá!
Dona Zefa apurou as vistas e reconheceu o acusado.
– Hum! Tô veno ele...
Silenciaram. Dona Zefa acendeu o cachimbo, devagarinho... e deu uma primeira baforada. Maria já sabia. Ela estava pensando.
Demorou um tiquinho e Dona Zefa amarrou o assunto:
- Vai discascá laranja e botá no balaio. Já vai iscurecê. Daqui pá poco vai chegá o povo pro jogo e eu já quero tá lá no portão pru mode vendê.
RETRANCA DE LÁ
Zé Canju, de Araticum, povoado de Monte Santo, segredou para Honorato, seu companheiro de pesca:
- Seu Honorato, vamicê crerdita que, dêrna de tardinha, tem uma moça ali, daquele pessoá do Espinho, oiano pra eu o tempo todo?
- É mermo, hómi?! – Estranhou o companheiro. - Por que será? Tu é fei que só a peste! É pra tu mermo que ela tá oiano?
- Com certeza! Já cravou os zói umas duas vêis pra riba d’eu.
- Só se ela fô doida ou tivé pobrema de vista! Além de doca, tú é cacunda! Ela tá é assustada cum tu! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!
Zé Canju também caiu na risada.
O velho Honorato encerrou o assunto:
- Vai pro portão do estádio vendê nosso peixe frito, que dá mais resurtado. É nisso que nóis tem de se apreucupá agora, senão amanhã num tem dinheiro.
LIMPANDO A JOGADA
Dona Zefa se achegou perto de Zé Canju, meio como não queria nada. O segundo tempo do jogo em curso. Ele já tinha vendido seus peixes. Ela agora só tinha na mão a faquinha de cortar laranja. Criou coragem:
- Boa noite, seu moço!
Zé Canju, que reconheceu a anciã do grupo de Maria, respondeu meio cabreiro:
- Boa noite!
Dona Zefa entrou logo de carrinho:
- Vamicê, por acaso, tava cum oiá de pêxe morto pra riba de minha neta hoje de tarde?
Ele tomou um baita susto com a pergunta. Ficou todo sem jeito. Gaguejou:
- Não... não sinhora!
Ela se valeu da frouxidão dele e entrou para cartão vermelho:
- Oia, cabra! Eu só vô dizê pra vamicê o seguinte: Minha neta é moça deretcha, viu? Apesá dela sê cotó de uma perna e só andá sustentada na muleta, ela é decente, viu? É moça pra casamento! – E falou balançando a faquinha.
Zé Canju começou a suar e ergueu a zaga:
- Mas eu num tava oiano pra ela, não, dona! Na verdade, eu é que achei que ela tava me ispiano, tarvez de pena, pur causa da minha cacunda... – Mudou de tom. Pegou novo fôlego e tentou um contra-ataque: - Peço à sinhora que me adisculpe. Eu não tenho ninhuma intenção contra ela, não. Eu não tenho nada pra dá pra ela nem pra moça ninhuma.
- Dexa pra lá! – Dona Zefa amorteceu a jogada. – Foi um mal-entendido.
Foram-se embora, Dona Zefa na frente, ainda segurando a faquinha, e Zé Canju, um pouco atrás, ainda segurando a respiração.
O CONFRONTO DIRETO
Ao passar pelo canto onde estava a turma do Espinho, Zé Canju olhou furtivamente para Maria, que segurava um candeeiro de pavio longo bem aceso. Ainda que meio de banda, deu para ele fixar bem o rosto dela, com o olho bom que tinha. Também ela reparou nele, com vivacidade, sentada na esteira, a muleta do lado. Ele quase parou e não tirou ela de mira. Lance em questão de segundos... Ela ficou quase uma estátua voltada na direção dele. Dona Zefa percebeu o jogo de olhares, mas fingiu não ver nada. Ficou caçando fumo no bocapiu, mas vigiando de soslaio. Ele se aprumou e seguiu adiante, todo sem jeito. Mas, num impulso, resolveu olhar para trás buscando vê-la de novo, e ela aproveitou para lhe mostrar um sorriso envergonhado, trêmulo, mas significativo. Ele parou e retribuiu, todo acanhado, mas firme. Nisso, uma explosão de alegria invadiu a noite em derredor. Milhares de corações palpitaram forte. Houve um gol dentro do campo. A marquise parecia que ia desabar. Eles ainda continuaram se olhando e sorrindo um para ou outro mais uns segundinhos, enquanto o povo acima deles delirava de euforia.
O JOGO INDECISO DELA
Mais tarde, inquietada, Maria buscou confirmação com Dona Zefa.
– Ô, vó! Eu acho que ele arreparou em eu com gosto...
- É... eu assuntei o jeito dele te oiá... Parece que ele tá mermo interessado in tu...
- Será, vó?
- Tu num viu como ele te oiô com um jeito todo besta?
- Verdade! Nunca ninguém me assuntô do jeito que nem ele... Será que ele ia gostá de mim assim?... Andá comigo de muleta pra riba e pra baxo? O que é que eu tenho pra oferecê pra ele, vó?
- Oxe! Dêxe de bestage! - Dona Zefa ralhou severamente com a neta.
Breve silêncio. Maria ficou acompanhando a avó acender o cachimbo e tirar uma baforada. Ela sabia que a primeira fumaçada sempre antecedia uma frase mais bem medida da anciã. Ficou na expectativa.
Dona Zefa pegou firmeza:
- Sabe o que é que tu tem pra dá pra ele?
- Eu não!
- Mas eu sei.
- E o que é? - Maria quis saber meio na expectativa.
Dona Zefa concluiu em tom sentencial:
- Tu tem tu!
- Eu?
- Sim. Tu mermo! Tu é mulé, num é? Ele é hómi. Ontonce tá cabado! E ademais disso, tu é trabaiadera, séra, honrada. Ninguém tem nadica de nada a falá de tu... Sorte do hómi que tirá tu pra casamento...
O JOGO INDECISO DELE
Zé Canju estava agoniado. Não conseguia dormir. Não conseguia nem deixar de olhar para o canto onde Maria estava.
Honorato, já embiocado numa colcha dorme-bem, antes de garrar no sono questionou o companheiro:
- E aí, bestaiado? Não consegue tirá o ôio bom da direção da capenga, né mermo?
Zé Canju, inquietado, aproveitou para confirmar:
- Seu Honorato, vamicê num vai crerditá, mas ela mostrou que tá cum interesse n’eu...
Honorato deu uma gargalhada.
– Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Tu é um zé coió mermo, né? Te assunte, hómi! Quem é a doida que vai se ingraçá por um bicho fei que nem tu?
- O que é isso, companheiro? Num se ria d'eu assim, não. Assim vamicê tá me botando mais baxo do que uma galinha! – Falou Zé Canju meio contrariado, mas respeitoso com o amigo já idoso.
Honorato mudou o tom:
- Tu sabe que eu tô pileriano cum tu, né, hómi?
- Eu sei... eu sei... mas... O pobrema é que, na verdade, eu não tenho mermo nada que sirva pra atraí uma moça, não.
- E tem outro pobrema. – arguiu o ancião. - Ela é preta que só cauvão e tu é branco. Onde já se viu isso? Tu qué sujá tua famia?
- Eu num ligo pra isso, não, mano véio. Isso é preconceito antigo do sertão. O que eu sei é que ela pareceu mermo que tava sorrindo pra eu cum argum gosto... É isso que tá me deixano sem intendê nada.
- Será mermo?
- Tenho certeza! Acho que eu mexi com ela d’ argu’a forma...
- E ói que ela nem te conhece... É de istranhá mermo. – Reforçou o companheiro.
- Eu sô cacunda e doca de um ôio. Vivo mangado pur todo mundo. Nunca dei sorte de vê um futuro garantido na vida... nem pra mim nem pra dá pra ninguém... Carinho nunca tive, a não ser na maginação. Só encontro dureza em meu caminho...
- Oxente, hómi! – tentou corrigir Honorato. – Também num é assim, não. Tu tá ixagerano...
- Mas num é verdade? O que é que eu tenho pr' oferecê pra ela, seu Honorato? Um hómi na minha condição...
Silêncio.
Depois de pensar um pouco, Honorato temperou a goela e solenizou:
- Sabe o que é que tu tem, a meu ver, que te conheço desde miudin?
- O quê? – Zé Canju quis saber meio na expectativa.
Honorato falou firme:
- Tu tem o que toda muié gosta ou divia gostá de vê num hómi: caráter! Tu tem caráter, meu amigo! Tu nunca deu disgosto a tua famia. Tu jamais correu de trabai. Sempre foi respeitadô. Que é que uma muié pode querê mais de um hómi que nem tu? Sorte de quarqué muié que tu tirá pra casamento...
Zé Canju até gostou de ouvir aquelas palavras, as primeiras positivas que ouviu sobre si.
A PRORROGAÇÃO
O jogo tinha acabado.
Os torcedores foram embora.
As luzes do estádio aos poucos se apagaram.
O breu dominou o ambiente sob o céu pouco estrelado.
Os candeeiros sob a marquise oculta se apagaram, à exceção de dois, que ficaram acesos, rentes, fieis, tinhosos, ainda que com os pavios encurtados, para não incomodar os que já estavam ou já queriam dormir naquele acampamento improvisado. Apesar da escuridão em todo o derredor, duas luzinhas miúdas ficaram de longe gastando querosene. Sinalizaram que pelo menos dois dos retirantes não cederam ao sono naquela noite de euforia no estádio da Fonte Nova; que duas almas aqueciam os próprios corações. Prorrogaram a ansiedade, as expectativas, as “maginações”. Velaram a noite toda... sentados um bem na direção do outro... Só apagaram seus candeeiros no romper da aurora, ao acender do holofote solar, exaustos, mas felizes. Houve de alguma forma um jogo silencioso entre eles. Um jogo de um a um.
RETRANCA DE CÁ
Maria, do povoado santabrigidense de Espinho, confidenciou para Dona Zefa, sua avó:
- Tem um hómi ali, da turma de Araticum, que tá mispiano...
Dona Zefa estranhou:
- E é? Oxente, minina! Tu tá doida? Quem é que vai ispiá in tu?
- Ele tá ispiano, sim! – insistiu Maria. – Já cravou os zói umas duas vêis pra riba d’eu.
- Nadonde tá ele? – Quis saber Dona Zefa.
- É aquele cacunda que todo dia vai pescá no dique do Tororó... Ói ele lá!
Dona Zefa apurou as vistas e reconheceu o acusado.
– Hum! Tô veno ele...
Silenciaram. Dona Zefa acendeu o cachimbo, devagarinho... e deu uma primeira baforada. Maria já sabia. Ela estava pensando.
Demorou um tiquinho e Dona Zefa amarrou o assunto:
- Vai discascá laranja e botá no balaio. Já vai iscurecê. Daqui pá poco vai chegá o povo pro jogo e eu já quero tá lá no portão pru mode vendê.
RETRANCA DE LÁ
Zé Canju, de Araticum, povoado de Monte Santo, segredou para Honorato, seu companheiro de pesca:
- Seu Honorato, vamicê crerdita que, dêrna de tardinha, tem uma moça ali, daquele pessoá do Espinho, oiano pra eu o tempo todo?
- É mermo, hómi?! – Estranhou o companheiro. - Por que será? Tu é fei que só a peste! É pra tu mermo que ela tá oiano?
- Com certeza! Já cravou os zói umas duas vêis pra riba d’eu.
- Só se ela fô doida ou tivé pobrema de vista! Além de doca, tú é cacunda! Ela tá é assustada cum tu! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!
Zé Canju também caiu na risada.
O velho Honorato encerrou o assunto:
- Vai pro portão do estádio vendê nosso peixe frito, que dá mais resurtado. É nisso que nóis tem de se apreucupá agora, senão amanhã num tem dinheiro.
LIMPANDO A JOGADA
Dona Zefa se achegou perto de Zé Canju, meio como não queria nada. O segundo tempo do jogo em curso. Ele já tinha vendido seus peixes. Ela agora só tinha na mão a faquinha de cortar laranja. Criou coragem:
- Boa noite, seu moço!
Zé Canju, que reconheceu a anciã do grupo de Maria, respondeu meio cabreiro:
- Boa noite!
Dona Zefa entrou logo de carrinho:
- Vamicê, por acaso, tava cum oiá de pêxe morto pra riba de minha neta hoje de tarde?
Ele tomou um baita susto com a pergunta. Ficou todo sem jeito. Gaguejou:
- Não... não sinhora!
Ela se valeu da frouxidão dele e entrou para cartão vermelho:
- Oia, cabra! Eu só vô dizê pra vamicê o seguinte: Minha neta é moça deretcha, viu? Apesá dela sê cotó de uma perna e só andá sustentada na muleta, ela é decente, viu? É moça pra casamento! – E falou balançando a faquinha.
Zé Canju começou a suar e ergueu a zaga:
- Mas eu num tava oiano pra ela, não, dona! Na verdade, eu é que achei que ela tava me ispiano, tarvez de pena, pur causa da minha cacunda... – Mudou de tom. Pegou novo fôlego e tentou um contra-ataque: - Peço à sinhora que me adisculpe. Eu não tenho ninhuma intenção contra ela, não. Eu não tenho nada pra dá pra ela nem pra moça ninhuma.
- Dexa pra lá! – Dona Zefa amorteceu a jogada. – Foi um mal-entendido.
Foram-se embora, Dona Zefa na frente, ainda segurando a faquinha, e Zé Canju, um pouco atrás, ainda segurando a respiração.
O CONFRONTO DIRETO
Ao passar pelo canto onde estava a turma do Espinho, Zé Canju olhou furtivamente para Maria, que segurava um candeeiro de pavio longo bem aceso. Ainda que meio de banda, deu para ele fixar bem o rosto dela, com o olho bom que tinha. Também ela reparou nele, com vivacidade, sentada na esteira, a muleta do lado. Ele quase parou e não tirou ela de mira. Lance em questão de segundos... Ela ficou quase uma estátua voltada na direção dele. Dona Zefa percebeu o jogo de olhares, mas fingiu não ver nada. Ficou caçando fumo no bocapiu, mas vigiando de soslaio. Ele se aprumou e seguiu adiante, todo sem jeito. Mas, num impulso, resolveu olhar para trás buscando vê-la de novo, e ela aproveitou para lhe mostrar um sorriso envergonhado, trêmulo, mas significativo. Ele parou e retribuiu, todo acanhado, mas firme. Nisso, uma explosão de alegria invadiu a noite em derredor. Milhares de corações palpitaram forte. Houve um gol dentro do campo. A marquise parecia que ia desabar. Eles ainda continuaram se olhando e sorrindo um para ou outro mais uns segundinhos, enquanto o povo acima deles delirava de euforia.
O JOGO INDECISO DELA
Mais tarde, inquietada, Maria buscou confirmação com Dona Zefa.
– Ô, vó! Eu acho que ele arreparou em eu com gosto...
- É... eu assuntei o jeito dele te oiá... Parece que ele tá mermo interessado in tu...
- Será, vó?
- Tu num viu como ele te oiô com um jeito todo besta?
- Verdade! Nunca ninguém me assuntô do jeito que nem ele... Será que ele ia gostá de mim assim?... Andá comigo de muleta pra riba e pra baxo? O que é que eu tenho pra oferecê pra ele, vó?
- Oxe! Dêxe de bestage! - Dona Zefa ralhou severamente com a neta.
Breve silêncio. Maria ficou acompanhando a avó acender o cachimbo e tirar uma baforada. Ela sabia que a primeira fumaçada sempre antecedia uma frase mais bem medida da anciã. Ficou na expectativa.
Dona Zefa pegou firmeza:
- Sabe o que é que tu tem pra dá pra ele?
- Eu não!
- Mas eu sei.
- E o que é? - Maria quis saber meio na expectativa.
Dona Zefa concluiu em tom sentencial:
- Tu tem tu!
- Eu?
- Sim. Tu mermo! Tu é mulé, num é? Ele é hómi. Ontonce tá cabado! E ademais disso, tu é trabaiadera, séra, honrada. Ninguém tem nadica de nada a falá de tu... Sorte do hómi que tirá tu pra casamento...
O JOGO INDECISO DELE
Zé Canju estava agoniado. Não conseguia dormir. Não conseguia nem deixar de olhar para o canto onde Maria estava.
Honorato, já embiocado numa colcha dorme-bem, antes de garrar no sono questionou o companheiro:
- E aí, bestaiado? Não consegue tirá o ôio bom da direção da capenga, né mermo?
Zé Canju, inquietado, aproveitou para confirmar:
- Seu Honorato, vamicê num vai crerditá, mas ela mostrou que tá cum interesse n’eu...
Honorato deu uma gargalhada.
– Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Tu é um zé coió mermo, né? Te assunte, hómi! Quem é a doida que vai se ingraçá por um bicho fei que nem tu?
- O que é isso, companheiro? Num se ria d'eu assim, não. Assim vamicê tá me botando mais baxo do que uma galinha! – Falou Zé Canju meio contrariado, mas respeitoso com o amigo já idoso.
Honorato mudou o tom:
- Tu sabe que eu tô pileriano cum tu, né, hómi?
- Eu sei... eu sei... mas... O pobrema é que, na verdade, eu não tenho mermo nada que sirva pra atraí uma moça, não.
- E tem outro pobrema. – arguiu o ancião. - Ela é preta que só cauvão e tu é branco. Onde já se viu isso? Tu qué sujá tua famia?
- Eu num ligo pra isso, não, mano véio. Isso é preconceito antigo do sertão. O que eu sei é que ela pareceu mermo que tava sorrindo pra eu cum argum gosto... É isso que tá me deixano sem intendê nada.
- Será mermo?
- Tenho certeza! Acho que eu mexi com ela d’ argu’a forma...
- E ói que ela nem te conhece... É de istranhá mermo. – Reforçou o companheiro.
- Eu sô cacunda e doca de um ôio. Vivo mangado pur todo mundo. Nunca dei sorte de vê um futuro garantido na vida... nem pra mim nem pra dá pra ninguém... Carinho nunca tive, a não ser na maginação. Só encontro dureza em meu caminho...
- Oxente, hómi! – tentou corrigir Honorato. – Também num é assim, não. Tu tá ixagerano...
- Mas num é verdade? O que é que eu tenho pr' oferecê pra ela, seu Honorato? Um hómi na minha condição...
Silêncio.
Depois de pensar um pouco, Honorato temperou a goela e solenizou:
- Sabe o que é que tu tem, a meu ver, que te conheço desde miudin?
- O quê? – Zé Canju quis saber meio na expectativa.
Honorato falou firme:
- Tu tem o que toda muié gosta ou divia gostá de vê num hómi: caráter! Tu tem caráter, meu amigo! Tu nunca deu disgosto a tua famia. Tu jamais correu de trabai. Sempre foi respeitadô. Que é que uma muié pode querê mais de um hómi que nem tu? Sorte de quarqué muié que tu tirá pra casamento...
Zé Canju até gostou de ouvir aquelas palavras, as primeiras positivas que ouviu sobre si.
A PRORROGAÇÃO
O jogo tinha acabado.
Os torcedores foram embora.
As luzes do estádio aos poucos se apagaram.
O breu dominou o ambiente sob o céu pouco estrelado.
Os candeeiros sob a marquise oculta se apagaram, à exceção de dois, que ficaram acesos, rentes, fieis, tinhosos, ainda que com os pavios encurtados, para não incomodar os que já estavam ou já queriam dormir naquele acampamento improvisado. Apesar da escuridão em todo o derredor, duas luzinhas miúdas ficaram de longe gastando querosene. Sinalizaram que pelo menos dois dos retirantes não cederam ao sono naquela noite de euforia no estádio da Fonte Nova; que duas almas aqueciam os próprios corações. Prorrogaram a ansiedade, as expectativas, as “maginações”. Velaram a noite toda... sentados um bem na direção do outro... Só apagaram seus candeeiros no romper da aurora, ao acender do holofote solar, exaustos, mas felizes. Houve de alguma forma um jogo silencioso entre eles. Um jogo de um a um.