Olavo da Penha Cazumbá (heterônimo)

 
Zebedeu abriu a janela do fundo da palafita, para escovar os dentes, ainda zonzo de sono. Caneca de alumínio na mão. Uma preguiça danada. Deviam ser antes das 5 horas da madrugada. Ainda estava meio escuro.
Foi para a porta da frente e ficou por uns minutos apreciando a maré vazante. Viu passarem por sobre a ponte alguns moradores das redondezas já rumando para suas labutas.
 
Havia mais de vinte fábricas em toda a Itapagipe, que era, naqueles idos dos anos 60, a maior península industrial do Brasil. Os trabalhadores que podiam, moravam em terra; quem não podia, morava sobre as águas, em barracos de tábuas. Eram construções precárias, feitas de tábuas velhas, compensados, restos de móveis. Paredes, tetos e assoalhos desordenados, tudo acinzentado pela descoloração do sol sobre as águas sujas e poluídas da enseada dos Tainheiros e sobre os braços de mar que adentravam os bairros do Uruguai, Vila Rui Barbosa, Massaranduba e Madragoa. Era uma Veneza de barracos apoiados sobre estacas esquálidas e cheias de ostras.
Foi nas palafitas da Madragoa que Zebedeu tinha conseguido um cantinho para passar uns tempos até se estabelecer num emprego e poder mudar para um ambiente mais protegido e que fosse sobre o chão. Era, aliás, um sonho de muitos no começo, mas a grande maioria acabava ficando era por lá mesmo. Esse sentimento de transitoriedade contribuiu para o não desenvolvimento de uma cultura de estética habitacional mínima naquelas bandas da Cidade Baixa de Salvador. E o complexo de invasões ou favelas na maré, a que chamávamos Alagados, ia se ampliando mais e mais, ao ponto de, no início dos anos 70, já ser maior do que muitas cidades do interior da Bahia.
 
Zebedeu tinha de chegar na garagem da SMTC, empresa de ônibus da prefeitura, no bairro de Roma, antes das 7h. Estava pegando de borracheiro. Primeiro emprego. Primeiro mês. Ainda nenhum salário.
Sem um puto no bolso, ficou pensando em como e onde iria quebrar o jejum naquele dia. Não era tão novo na área, mas era de poucas amizades. Não tinha conta em nenhuma venda. Estavam difíceis aqueles primeiros dias fora da camelagem.
Nisso, Nonato, um colega da empresa, cobrador, foi passando diante da porta dele, se equilibrando sobre a ponte estreita, e Zebedeu puxou conversa:
- Ô, Nonato! Já tá indo?
- É, sim! Pra adiantar. Vou tomar primeiro um copo de mingau com bolo lá na porta da empresa, antes de pegar no trampo. Quer ir junto?
- Tô duro, colega! E eu nem conheço a mulher que fica lá vendendo, pra poder pagar depois.
- Por isso, não. Eu mando botar em minha conta, rapaz! Depois a gente acerta. Vamos?
- Bem, então me espere aí por uns cinco minutos, que é o tempo de eu me arrumar aqui, no pique. É ligeirinho.
Zebedeu entrou às pressas e, em menos de três minutos, já estava arrumado. Não podia perder aquela chance de comer alguma coisa antes de pegar no batente.
Foi fechar a janela do fundo. Mas, de repente, olhando para a maré escura, tomou um susto danado com uma grande coisa escura e arredondada que se sobressaía da água preta enlameada e cheia de lixo. Era algo estranho.
Chamou o colega: - Nonato! Entre aqui um pouquinho e venha ver uma coisa aqui no fundo! Venha logo!
Nonato foi até a janela posterior, olhou apurando as vistas, porque o dia ainda não tinha clareado de todo.
Perguntou estranhando:
- Que diacho é aquilo, hómi?!
- Sei lá!
De repente, alguém olhando de um barraco que dava fundo com fundo com o de Zebedeu, gritou:
- Óia uma baleia encalhada!!!
Pronto! Bastou essa descoberta em voz tão alta, que, logo, logo, começou o maior alvoroço sobre as pontes. Tudo mundo queria confirmar aquilo.
E era uma baleia mesmo. Já dava para ver suas nadadeiras. Veio perdida durante a maré vazante e ficou encalhada justamente ali atrás do barraco de Zebedeu, quase debaixo do seu assoalho. Pegou tudo mundo de surpresa. Nunca tinha ocorrido aquilo por ali, pelo menos segundo alguns moradores mais velhos.
Em menos de dez minutos, havia uma multidão de curiosos, entre homens, mulheres e crianças. Gente que Zebedeu nem conhecia pediu licença e foi entrando em seu barraco, para ver o bicho num ângulo mais privilegiado, que era a janela do fundo, disputadíssima. O dono da casa ficou sem saber o que fazer, meio atarantado. O colega, também.
 
O dia amanheceu.
Biteco, filho de Donana costureira, resolveu atiçar um pedaço de pau, para ver se o animal estava vivo. E não é que estava! Balançou o corpo todo. Devia ter uns quatro metros.
- É um filhote de baleia jubarte! – Esclareceu Seu Joab, um velho marinheiro aposentado.
- Eta! Carne fresca pra nóis hoje! – Interveio de pronto Seu Fausto alfaiate.
- Vamos matar ela e dividir a carne! – Sugeriu Nestor carpinteiro, da ponte de Santa Rita.
- Não! O que é isso? Vamo sortá ela. Pode dar azá pra nóis matá um animá assim, sem quarqué defesa. – Ponderou Seu Domingos pescador.
Aí começou o bate-boca, pelo menos entre os que estavam mais perto da presa.
Mata! Não mata! Mata! Não mata! Foi o maior arerê.
 
Seu Joaquim da quitanda argumentou: - Entre ela e nós, quem tem prioridade? Nós somos seres humanos. E é normal os seres humanos matarem os animais pra comer. Jesus pescou peixe para seus discípulos, não foi? Qual é o problema?
Dona Cláudia, esposa de Seu Joab, replicou: - Mas, gente, aqui é diferente. Ela tá sofrendo. Veio pra aqui por engano. Tá perdida. Tá encalhada... sem poder voltar pra casa, que é o alto mar. Além disso, ela é um filhote. Temos que ter pena dela...
- Pena? Pena? – Rebateu asperamente seu Nestor. - E quem é que tem pena de meus dois filhos, que eu deixo em casa todo dia só com dois pães cacetinhos e uma jarra de Q-Suco?
- Só que seus fio não tão encalhados entre a vida e a morte como essa criatura de Deus tá agora, não! – tomou a palavra Dona Alfreda, mulher de seu Domingos. – Vamicê num tem sentimento, não?
E o debate prosseguiu.
Enquanto isso a baleia estava lá, paradona, sob os olhares curiosos da populaça, ainda mexendo um pouquinho as nadadeiras, como que esperando a decisão do júri.
Mesmo preocupado com o horário, Zebedeu ficou impossibilitado de ir trabalhar, por causa da muvuca do entra e sai dos curiosos que queriam ver o cetáceo de um ângulo vip, que era a janela do fundo de sua palafita.
Ele sugeriu a Nonato: - Colega, vá na frente e avise lá na garagem sobre o ocorrido aqui em casa e que eu vou chegar mais tarde. né melhor? Senão é capaz de eu perder o dia e até perder o emprego. Ainda tô na experiência...
- Deixa comigo! – Concordou o companheiro. – Depois tu me conta o destino desse bafafá. Se matarem ela, tu não te esqueça de guardar pra mim meu pedaço. Quero da barriga, hein! Pelo menos uns cinco quilos.
Afastou-se devagarzinho, cuidando de não cair. A ponte em frente estava alastrada de gente, que admirava a jubarte por baixo do barraco de Zebedeu. A jubarte parecia um preso atrás das grades, que eram as varas da própria palafita.
Nisso, ainda durante o vozerio dos debatedores, chegou Carlão, brigador de rua, mal visto na comunidade. Tinha encerrado há poucos dias uma ausência de meses em que esteve corrido da Polícia. Aproximou-se de canoa, pelos fundos dos barracos. O debate foi interrompido. Todo mundo voltou as atenções para ele, que era de pouco falar, sempre sisudo.
Zebedeu sentiu um calafrio. Já tinha visto o valentão bater em três policiais na Rua Direta do Uruguai durante um Carnaval.
Ele atracou bem de junto da baleia. Tocou nela com um arpão. Houve um “oh!” de alguns.
Carlão indagou aos mais próximos, com sua voz grave e imperiosa. – E aí? Que é que vamo decidi com ela? Vamo matá ou vamo tentar salvar?
- É isso que tamos aqui discutindo, Seu Carlão. – Respondeu Zebedeu, que se pronunciou em público pela primeira vez. – O certo é que tem muita gente aqui com fome e sem ter o que comer. Eu sou a favor de matar.
E aí a torcida a favor da morte pronunciou-se em coro: - Mata! Mata!
Dona Idalina, mãe de dona Cláudia, resolveu se manifestar: - Peraí, minha gente! Nós precisamos ter um pouquinho de consciência! O que é isso? É um animal que está aí, sem defesa nenhuma, a ponto de morrer. Deus não se serve dessas coisas, não! – Olhou para Carlão e quis saber: E o senhor, Seu Carlão? Qual é sua opinião?
E Carlão deu sua opinião, com ar de julgador de última instância: - Eu vou matar ela!
E em seguida, já com ar de executor, pegou um arpão do fundo da canoa.
Os contra gritaram: - Não! Não faça isso! 
Os a favor reforçaram: - Mata! Mata!
A gritaria dos prós e dos contras ficou ensurdecedora.
Carlão vacilou um pouco, mas já tinha dado o veredito por conta própria e ergueu no ar o arpão, apontando para a condenada.
De repente, ouviu-se uma voz clemente da janela do fundo de um dos barracos vizinhos ao de Zebedeu: - Nããããããão!
Era um não rouco, trovejador, horripilante.
Todos se estatelaram e olharam, na direção do grito, que se superpôs ao dos demais. Carlão baixou um pouquinho a arma.
Foi o não de Rita Jacobina, ex-marisqueira, que apareceu de repente e gritou da janela posterior do seu barraco.
Foi um susto geral. Há muitos anos, ela não botava a cara do lado de fora. Tinha dementado depois da perda do marido, que naufragara numa tempestade quando pescava em mar aberto. Inclusive, tinha ficado muda. Vivia das esmolas que ex-colegas de mariscada levavam até ela diariamente.
- Que é que essa maluca quer? – Contestou de imediato seu Nestor. - Mata logo essa baleia e vamos repartir a carne dela logo!
Carlão reergueu o arpão.
Rita Jacobina gritou outro não comprido, assustador, e, subitamente, abriu a porta do fundo e se atiçou na água suja misturada com lama, sob os gritos alvoroçados da populaça: “Que é isso, Rita!” “Tu é doida?” “Tu vai morrer, mulher!
Carlão suspendeu a execução, embora ainda tenha ficado na posição de lançamento.
Rita Jacobina, mesmo extremamente obesa, conseguiu nadar até o cetáceo, num esforço sobre-humano, e abraçou-se a ele chorando e gritando roucamente “nãããão!”, “nãããão!”, como se fosse sua porta-voz.
Mexeu com todo mundo. Agora a preocupação da maioria era com a segurança dela.
- Essa mulher é louca mesmo! Separa ela da bicha, Seu Carlão, ou ela pode até morrer afogada nessa lama! – Vociferou Seu Fausto alfaiate.
Alguém gritou anonimamente: - Êta! Agora são duas baleias! Vai sobrar mais carne!
Ninguém achou graça. A cena era constrangedora. Rita continuou gritando nãos arrepiantes e chorando copiosamente.
Eis que, de repente, a baleia se agitou bastante. Houve um “oh!” geral. Foi a deixa para Carlão guardar o arpão e mudar de decisão:
- Rumbora! Vou precisar de corda e de uns dez homens para me ajudar a salvar Rita e a desencalhar a baleia! Tem de ser logo! Antes que seja tarde!
Depois da consternação coletiva, foi fácil a adesão ao plano de resgate das duas criaturas.
Foi um trabalho penoso, principalmente porque Rita não facilitava o processo. Continuava abraçada à baleia, ainda que agora calada, compenetrada, quase dormindo... sob o céu já azulado e sob o sol quente.
Ninguém mais queria saber de matar a baleia. Muitas mulheres estavam chorando. O sentimento de solidariedade mobilizara energicamente dezenas de homens no trabalho de salvamento. A cena era comovedora.
Outros barcos atracaram para reforço, pela maré, que já estava crescendo, o que facilitou o trabalho de desencalhe do animal.
O problema é que não houve quem conseguisse convencer Rita a desabraçar-se da baleia. Ela estava serena, mas firme, quase uma estátua, como que protegendo maternalmente o animal.
Seu Joab foi instado a tentar uma “negociação”. Entrou num barco e foi pertinho dela para propor um acordo. Falou mansamente: - Ouça, Rita! A maré já está enchendo. A baleia já está quase salva. Vamos arrastar ela para o mar, com todo cuidado. Mas se você não se desgrudar dela, ela vai morrer aqui mesmo. E você também corre risco...
Depois de uma mudez de anos, Rita Jacobina proferiu sua primeira frase:
- Vocês prometem que não vão matar ela, não? Prometem?
Sua voz saiu rouca e com muito esforço, mas forte o suficiente para ser ouvida de longe. Seu Joab e muita gente responderam juntos: “Prometemos!” “Prometemos!”
Ela aceitou o acordo. Estendeu a mão para Carlão, que, ajudado por mais uns quatro homens fortes, conseguiu soerguê-la para dentro da canoa. Foi um grande alívio. Houve aplausos gerais. Ajudada, com seu corpão volumoso encharcado de lama, enquanto era estridentemente aplaudida pela populaça, ela subiu devagar a escada da ponte mais próxima de sua casa, cheia de lama, como que ressurgindo do limbo, de volta para a vida. Mas, não entrou logo, não. Ficou acompanhando a remoção da baleia até mar afora. Depois, sim, foi tomar banho e receber o cuidado das amigas.
Cerca de meia hora depois chegaram uns repórteres do Jornal da Bahia, mas não viram mais a jubarte, só o bolodório dos moradores sobre o acontecido.
 
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Zebedeu perdeu o dia de trabalho e perdeu o emprego na SMTC, mas dias depois conseguiu trabalho de ajudante na alfaiataria de seu Fausto.
Carlão voltou a sumir. Tinha feito uma arruaça na Sinuca de China, da ponte das Varinas. Rolou sangue.
Dona Alfreda liderou uma reunião de mulheres, para fundarem uma associação de marisqueiras da península itapagipana.
Alguns poucos que foram a favor do balenocídio continuaram com a mesma opinião. Outros se converteram radicalmente. Coincidentemente, um ano depois, em 1967, as baleias jubartes passaram a ser protegidas oficialmente.
Seu Joab acrescentou aquele caso a suas histórias que contava no Largo da Madragoa toda tardinha. Dias depois, ele e Dona Cláudia fizeram uma grande festa em casa, para comemorarem a compra de um aparelho de televisão, o primeiro nas cercanias onde moravam. Houve um samba invocado, até de madrugada. E Rita Jacobina foi a essa festa. Ela tinha voltado a viver como antigamente. Voltou a mariscar de noite na praia do Bogary, com sua velha carocha e suas velhas amigas. Voltou a falar e a sorrir. Reencontrou o seu sentido da vida, talvez juntamente com os próprios Alagados.
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 22/11/2012
Reeditado em 02/11/2013
Código do texto: T3998764
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