Ultimamente, mais do que nunca, eu andava agoniado, com insônias, com insistentes reminiscências... Em verdade, eu nunca me senti à vontade no asilo de velhos.
Era um domingo de manhã de abril de 2004. Acordei de madrugada, assustado, suando frio. Tive um sonho, ou, mais do que isso, tive uma forte impressão de haver alguém no meu quarto percutindo um tambor. Arregalei os olhos. Olhei pra todos os lados. Nada. Terá sido algum sinal? Um chamado talvez?
E os pensamentos dos tempos idos começaram. Não era eu quem pensava. Eram os pensamentos que me invadiam. 
Passei a divagar. Resolvi voltar ao passado já bem distante. 
Quase naturalmente, comecei a lembrar de meus tempos de criança, em especial, de uma das visitas mais importantes que fiz acompanhando meus pais, isso em 1950, há exatos cinqüenta e quatro anos. Tentarei reproduzir os detalhes do acontecido.
 
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Arrumamo-nos. Trancamos o barraco.
Fomos em cinco. Além de meus pais e eu, juntaram-se também tia Nenca e o marido dela, tio Nô.
Nunca tínhamos saído tão alegres das palafitas para passar o dia fora como naquele dia. 
Sempre saíamos a passeio, pelo menos uma vez por mês, mas ir para a roça de Vô Izidoro, às margens do rio do Cobre, na floresta de São Bartolomeu, era sempre uma experiência fantástica. Lá eu vivia minha outra infância. Brincava no chão firme, sem rédeas, sem noções de perigo, sem nãos, sem sandálias. 
Não era tão longe de casa. Dois canoeiros amigos de pai nos levaram até a primeira estação do Subúrbio, a de Santa Luzia. De lá pegamos um trem até a estação suburbana de Almeida Brandão, de onde, por fim, alugamos uma carroça e seguimos até o destino. 
Tudo era fascinante para mim em meus dez anos de descobertas do mundo, que até então se resumia à Península de Itapagipe, principalmente ao complexo habitacional dos Alagados, onde morávamos, e à floresta de São Bartolomeu.
Quando chegamos na roça de Vô Izidoro, por volta das 10h, um mundo de parentes já se encontrava por lá fazendo movimentos na porta da casa, em derredor das árvores, na beira do rio, no pátio e em todo o derredor. Quando nos viram foi aquele abraça-abraça. 
Havia parentes de Cachoeira, de Santo Amaro da Purificação, de Itiúba... Todo mundo reunido, como há muito não se via. 
Vô Izidoro veio nos receber cheio de alegria. 
- João, meu filho! Pensei que não vinham mais! Que demora! Já tamos brincando desde cedo!
Após as bênçãos, pai tentou justificar:
- A gente mora num perto longe, porque não tem transporte direto...
Vô Izidoro cobrou de mãe: - Zeferina, minha nora! Trouxe um pedaço de fumo da venda de seu Arnaldo pro véio?
- Oxente! – respondeu mãe. - E eu ia deixar de trazer?
- E tu, Olavo? Tem estudado muito?
- Sim, vô! – respondi com firmeza.
Entramos. Comecei logo a correr de um lado pro outro, revendo os que eu já conhecia e os que ainda não. Tinha uma roda de capoeira, tinham umas três rodas de samba, roda de bate-papo dos mais velhos, brincadeira de roda das meninas. Devia haver mais de cem pessoas.
 
Era a festa de aniversário de cem anos de Vó Cloa, mãe de Vô Izidoro. 
 
Eu fui me banhar no rio juntamente com alguns primos. Era minha diversão predileta.
Ao meio-dia em ponto, a tradicional marimba percutiu estridentemente. Era o pregão para o grande almoço, para mim o ponto alto da festa. 
Corremos e nos preparamos. Era a hora também de a aniversariante aparecer no terreiro.
Pararam todas as atividades recreativas e preliminares. Ficamos de pé em frente à casa, na expectativa.
 
De repente, bem devagarzinho... vinda de lá de dentro, ladeada por um grupo de mulheres idosas, apareceu a dona da festa: Vó Cloa, em seus quase dois metros de altura, imponente, séria. Seu rosto singular era para mim assustador. Um rosto petrificado pelo tempo, sem rugas, sisudo. Olhos grandes, nariz achatado, lábios grossos, faces reluzentes. O negror de sua pele era fortíssimo, brilhante, impactante. Usava um torço branco. Trajava uma camisa azul-céu de cetim com mangas compridas e uma saia branca cheia de babados.
Quiseram ajudá-la a sair, mas ela recusou com seu vozeirão ainda imperioso: - Deixa! A velha tá velha, mas ainda aguenta se apoiar sozinha sobre os pés!
Aplausos calorosos. Todos gritaram: “Viva Vó Cloa!” “Muito bem!” “Saravá!”
A parentada foi abrindo espaço e ela seguiu devagar e altiva até a cabeceira da mesa grande sob um velho abacateiro em frente.
Como sempre fazia, chamou os mais idosos para tomarem assento à sua direita e os mais novos, inclusive eu, à sua esquerda. Cerca de vinte privilegiados no total. Os demais ficaram de pé.
Ela fez menção de que queria falar. 
Silêncio total. 
- Meus filhos. Eu não esperava que iria chegar à casa dos três algarismos, não. Mas, já que cheguei, tô muito feliz. Os mais velhos já conhecem a minha história. Mas vou repetir alguma coisa para os mais novos que estão chegando agora e que ainda têm muita poeira pela frente. 
Eu agucei os ouvidos.
Ela principiou: - Eu nasci em 1850, no meio do oceano Atlântico, dentro de um navio negreiro. 
Sua voz era forte, mistura de contralto com baixo, inimitável, única. Ela prosseguiu, falando devagar, mas firme: - Minha mãe, que na sua tribo de gigantes se chamava Danuwa, mas que aqui recebeu o nome de Maria de São Pedro, veio trazida do Império do Benin, como escrava... numa das últimas viagens de navios negreiros... Justamente naquele mesmo ano baixou uma lei proibindo o tráfico de negros escravizados da África... 
Parou um pouco. Respirou fundo. Prosseguiu: - Antes de eu vir morar aqui nesta floresta, com dez anos de idade, minha mãe sofreu muito! Sofreu muito para me manter viva! Trabalhou duro como escrava na casa dos brancos... Ela era muito alta, muito valente e também muito desaforada! Não se adaptou à condição de escrava. Aliás, escrava, não! Escravizada, como ela fazia questão de frisar. Ela não sabia fingir. Não aceitava fingir.  Não tinha jogo de cintura. Não ria para nenhum branco. Sofreu maus tratos, torturas, toda sorte de judiaria! 
Vó Cloa calou-se um pouco, emocionada. E eu fiquei tenso. 
Ela prosseguiu: - Um dia, em 1860, o sinhô-moço da última casa onde ela trabalhou descobriu ela fazendo uma coisa totalmente proibida para um cativo naqueles tempos. Minha mãe foi descoberta lendo um livro! Descobriram que ela tinha aprendido a ler! Concluíram que ela queria ter o conhecimento dos dominadores! Que ela queria deixar de ser cafre! Para quê?
Daí em diante ela falou com tristeza e visível emoção.
- Três ou quatro homens fortes arrastaram ela para o quintal da mansão, bateram nela bastante, sob as vistas do sinhô e da sinhá e sob as minhas vistas também. Depois obrigaram ela a comer todas as páginas do livro. Todas as páginas! E ela, meio desfalecida, sangrando, comeu... folha por folha. Folha por folha! Eu chorava baixinho, segura por uma mucama velha. Foi muito duro ver aquilo acontecer com minha mãe... na minha frente! Mas eu agüentei firme, porque eu sabia que minha mãe é quem sofria de verdade. Tudo que ela sofria era motivada por uma única coisa: o amor que ela sentia por mim. A vontade de me ver crescer e ser livre! E ser feliz! Até hoje eu tenho muita pena da minha mãe! Como ela sofreu! Minha pobre mãe...
 
Já havia várias mulheres chorando. Os homens em silêncio, cabeças baixas. As crianças assustadas. E eu imaginando...
Ela continuou:
- Dois dias depois, quando se recuperou um pouco e saiu do calundu, minha mãe me chamou em segredo e disse que iríamos fugir. Procuraríamos um quilombo, para ganhar a liberdade, mesmo que fosse uma liberdade às escondidas. Mas ela me disse que a gente não ia apenas fugir, não. Disse que levaria também um monte de livros para ler e para me ensinar a ler. Ela raciocinou que o negro ou o pobre sem leitura permanece cafre, submisso, comendo no prato dos poderosos, sem valor, sem futuro. Ela queria que ficássemos tão sabidas e independentes quanto os brancos e que conhecêssemos as mesmas coisas que eles. Que já nos preparássemos para os tempos após a abolição de que já falavam muito. E ler livros seria o primeiro passo. Para ela, ler todos os livros que se pudesse era a arma para garantir a liberdade depois, em várias frentes.
Isso ela falou fixando bem os olhos nos da esquerda da mesa. E prosseguiu, agora mais animada: - Minha mãe conheceu uma irmandade de negros que intermediavam aquilombamentos. Engajou-se. Depois de uns dois meses, numa noite de lua cheia, ela e eu conseguimos fugir da casa onde trabalhávamos, com a ajuda de uns irmãos quilombolistas, que acertaram e facilitaram tudo. O que atrapalhou um pouco foi o fardo de mais de cem livros que minha mãe insistiu em levar junto, furtados do porão da casa. Ela só iria com eles. Não abriu mão. Mas deu pra ir. 
Foi uma fuga perfeita, sem deixar rastros. Também certamente nem fizeram questão de recapturá-la. Ela era mesmo uma péssima escrava.
Antes de amanhecer chegamos aqui, minha gente. Isto tudo aqui tinha feito parte do maior quilombo de Salvador. Tinha sido o Quilombo do Urubu, que ia daqui até as paragens do Cabula.
Eu dei uma rápida olhada em derredor do ambiente. Vi as grandes árvores, as plantações, o rio próximo, as poucas casas meio espalhadas. Imaginei quanta história estava guardada por ali...
Vó Cloa percebeu minha circunvisão: - Nenhuma destas casas que estão aqui pertenceu ao quilombo, que foi destruído pelas tropas do governo após a revolta libertária de 1826. Prenderam e mataram pessoas e destruíram as moradas... Mas não destruíram os ideais libertadores! Não destruíram as almas dos aquilombados! Houve a reconstrução do quilombo tempos depois, ainda que com bem menos casas e todas bem separadas umas das outras. Foi quando minha mãe e eu chegamos aqui, em 1860, em busca da nossa liberdade, ainda que clandestina, fugidas do cativeiro cruel.
Neste momento, Vó Cloa silenciou. Olhou para todos os presentes. Respirou fundo e ordenou:
- Bem... Chega de história! Agora, vamos almoçar!
Serviram-se os pratos. Primeiro para os da mesa. Depois para os circundantes, que se assentaram em mesas menores e embaixo das árvores.
 
No descanso do almoço, aproximei-me de Vô Izidoro e perguntei baixinho: - Vô, posso fazer uma pergunta?
- Claro, Olavo! Pode perguntar.
- Onde ficaram os livros que a sua vó trouxe pra aqui?
- Eu ainda alcancei muitos desses livros. Cheguei a ler dezenas deles, mas houve um tempo em que minha avó tocou fogo em todos. Passou a entender que os livros dos brancos eram mentirosos, que eram a cara dos próprios brancos. Ela já sabia muito. Lia até em francês. Mas, principalmente, ela já pensava muito. Aprendeu a tirar suas próprias conclusões. Começou a não aceitar mais as histórias que os livros contavam e até proibiu minha mãe de continuar a lê-los. Eram livros editados na Europa, sobre o padrão de vida europeu. Os negros nunca eram citados como seres humanos normais. Eram referidos como seres inferiores. O Brasil não tinha editoras. Tudo era selecionado pela igreja e pelo governo. Mas, o mais importante ela legou para minha mãe, que também legou para mim: as histórias. As histórias da África, as histórias do povo negro, as histórias da nossa cultura popular, nunca prestigiadas pelas elites, nunca escritas nos livros... 
- Mas... Ela queimou mesmo todos os livros?
- Bem... Todos, não exatamente. Preservou uma meia dúzia. “Os livros da sabedoria universal”, como ela dizia. Até hoje estão guardados aqui em casa. Quem sabe um dia você não vai lê-los?
- Ah! Vou querer ler, sim. 
- Mas ela fez questão de ensinar tudo que aprendera para minha mãe. Os escravos e também os negros forros não podiam estudar regularmente, mesmo depois da abolição. Sua Vó Cloa só pôde entrar numa escola no início deste século, para conseguir um diploma. Sofreu humilhações, chacotas e perseguições, principalmente por causa da sua epiderme negra, da sua altura, da sua feição dura, da sua idade e até por causa da sua voz forte. Mas ela era determinada. Suportou todas as discriminações e venceu. Conseguiu o diploma de professora com mais de sessenta anos, com louvor.
- E ela foi mesmo professora?
- Tentou, tentou, mas não conseguiu ensinar em nenhuma escola oficial. Uma mulher negra não podia ensinar, muito menos uma africana. Para a sociedade baiana do início do século era inconcebível.  Isso entristeceu demais a minha mãe. Ela acabou por desistir de se profissionalizar e resolveu montar uma escola primária aqui na floresta mesmo. Resolveu ensinar de graça aos meninos pobres da própria floresta, que vieram dos subúrbios de Plataforma e Lobato e do bairro de Pirajá. E ela acabou gostando, porque tinha liberdade de ensinar o que queria e como queria. Eu mesmo fui seu aluno, a partir de 1890, bem antes dela se formar,  quando eu contava dez anos de idade, a mesma que você tem hoje. Mas ela não aliviava pra mim, não! Exigia de mim tão duramente quanto dos outros meninos. E eu aprendi não somente a língua portuguesa, mas também o francês e o ioruba. Aprendi com exemplos da cultura local, da natureza, do rio, das cachoeiras... Durante muitos anos, ela dava suas aulas ali, à sombra daquela jaqueira. – apontou para a jaqueira enorme que havia a poucos metros da casa. – Ela tinha descoberto que estudar em contato com a natureza ajuda na fixação dos assuntos. Havia sempre atividades ligadas ao meio ambiente. O rio, as árvores, os animais, tudo oferecia material didático para suas explicações. O rendimento da classe era sempre satisfatório. Minha mãe se realizou como professora e melhorou as condições de vida de muitos.
Vô Izidoro parou um pouco. Mostrou-se saudoso. Mas prosseguiu firme. - Ela especializou-se em ensinar a ler. Não a ler simplesmente, mas a ler entendendo e interpretando. Ela nos ensinou a desconfiar de todas as leituras, a não aceitarmos nada sem uma avaliação, sem uma análise. Queria que tivéssemos nossas próprias ideias, ainda que tomando como base as ideias alheias. De certa forma, foi uma influência da mãe dela, minha avó Danuwa.
 
De repente, outro sinal dos tambores. Hora da festança e dos rebuliços novamente. 
Houve vários discursos e rituais africanos e caboclos. Muita dança, capoeira, cantigas... Tudo muito simples e voltado para a alegria de Vó Cloa. 
E, como era tradição no terreiro, houve o momento do jongo, dançado só pelos mais velhos. Vô Izidoro teve sua participação cheia de volteios, certamente aproveitando-se de que era um antigo mestre de capoeira. E ele convidou Vó Cloa para participar um pouco da roda, como era tradição. A centenária relutou, relutou, mas em face da insistência de todos, seguiu lentamente até o centro da roda, segurou a saia e ficou mexendo o corpanzil, tentando ensaiar uns requebrados... devagarzinho... só pra constar. Foi um êxtase geral!
Àquela altura, eu estava já impressionado, não só com a vivacidade e a imponência dela, mas com toda sua história.
 
No final da tarde, todos nos reunimos na beira do rio, debaixo de uma grande jaqueira.
Sentada sobre um banco rústico, Vó Cloa declarou: - Eu estou deveras muito feliz por ter chegado aos meus tão esperados cem anos de vida. Eu gosto de viver. Eu vejo muitos sentidos na minha vida. Se puder, viverei intensamente cada minuto do tempo que me resta nesta carcaça velha. Eu tenho o que fazer. Agradeço muito a vocês todos por estes gestos de carinho. Agora, concedo a palavra para alguns de nossos amigos do outro lado que queiram dizer alguma coisa.
O rufar conjunto de vários tambores fez-se ouvir. Era o sinal para manifestações.
De súbito, uma voz esquisita e estranha começou a se ouvir através de Vô Izidoro:
- Cloa, receba meu abraço, minha irmã! Sua força e sua energia resultam da sua perfeita harmonia com a natureza deste rincão. As águas do rio do Cobre e seus afluentes e suas cachoeiras têm uma energia que nos sustenta e fortalece. Estas plantas, estas árvores e as entidades do reino vegetal falam com a gente à sua maneira. São nossas amigas. Devemos respeitar e reverenciar elas, sempre. A maioria das grandes árvores foi plantada pelos tupinambás há mais de um século. Mas também muitas frutas que vosmicês comem agradeçam aos plantadores do Quilombo do Urubu, que existiu aqui até ser destruído pelo governo, em 1826, depois de uma revolta libertadora. Os quilombolas foram presos e massacrados, mas deixaram suas contribuições para nosso uso... inté hoje. Muitos daqueles irmãos negros e também muitos índios que moravam aqui bem antes deles continuam como guardiões destas águas e destas árvores. Mas até quando? Num futuro bem próximo, as energias destruidoras virão aos montes... e serão insuportáveis. É triste. Mas quero deixar meu apelo. Vamos ter bom ânimo. Vamos trabalhar para conservar essa dádiva da mãe natureza. Podemos mudar esse futuro. Obrigado! Meu nome é Pedro Sacramento, morador deste quilombo desde 1826.
Silêncio. Um angoma foi tocado. Outros tambores o acompanharam.
E tia Nenca começou a falar. Mas a voz efetivamente não era a dela. Era voz de homem! Eu fiquei um pouco assustado. Naquele tempo eu ainda não entendia nada dessas coisas. Mas prestei atenção:
- Dona Cloa! Ou sou o cacique Pena Branca. Peço licença pra falar alguma coisa!
- Licença concedida! – respondeu Vó Cloa com autoridade.
- Saudações! Muita paz e muita saúde pra vosmicê e pra todos os presentes! Eu sinto muita vida neste lugar. Onde muitos só vêem uma floresta, eu vejo energias, pulsações, inteligências de todo tipo, do lado daí e do lado daqui. Aprendi a conhecer o universo aqui mesmo neste reduto onde vosmicê se criou desde os dez anos e vive até hoje e onde eu ainda vivo junto com os meus. O que lhe sustenta até nestas altas idades, principalmente, é que vosmicê herdou da sua mãe, a escrava Maria de São Pedro... a africana Danuwa, a capacidade de não sofrer ao ponto de esmorecer com as durezas da vida. Com isso, vosmicê desenvolveu a capacidade de entender a dor humana, a capacidade de perdoar, de não guardar mágoas. Isso tudo lhe fortalece e fortalece também este lugar. Mas tem muitos quilombolas do lado de cá precisando de conselhos e solenes. Muitos ainda vivem amarrados e sofrendo. Isso não é bom para ninguém. Vamos cuidar da natureza desse lado daí e vamos cuidar também da natureza do lado de cá, da natureza espiritual. 
Fiquei impressionado. Mas logo apontei os olhos para Chico Branco, que não era parente, mas era convidado muito querido por Vó Cloa. E ele entortou o rosto e se contorceu um pouco, enquanto atabaques o recepcionavam. Em seguida, ele se apresentou com uma voz rouca e baixa:
- Eu sou o negro forro José Agripino. Licença, iaiá Cloa?
- Oxente, meu irmão! – disse Vó Cloa. - Vosmicê não precisa pedir licença, não. Pode dar o seu recado.
- Irmã, eu vejo com tristeza os tempos presentes. O progresso material está começando a chegar em nossas matas e principalmente em nossas águas, de forma desordenada, destrutiva. Disseram que com a descoberta do petróleo no Brasil, em 1939, o que aconteceu justamente aqui pertinho, na fazenda do Lobato, tudo iria melhorar para o povo daqui. Até agora, depois de onze anos, nenhum resultado. Existem seres do reino da floresta perto de nós. Eles estão gritando por socorro. Eu vejo ondas de petróleo vindo com as águas. O progresso, em forma de lixo e muito esgoto, vai matar o rio do Cobre. Graças à força espiritual aqui reinante, este rio, provavelmente, será o último a morrer na cidade de Salvador, mas a força destrutiva do progresso e da ambição vai acabar vencendo. Muitos índios e muitos remanescentes do antigo quilombo estão aqui entristecidos com essas previsões. A cidade vai crescer. O lixo tomará conta de tudo. A depredação deste ambiente fará parte do fim dos tempos, por causa das sujeiras materiais e por causa dos pensamentos dos homens... Mas ainda há tempo... Algo pode ser feito para alterar ou até anular essas previsões. Ainda há tempo...
 
Ao final do encontro dos dois mundos, voltamos para a frente da casa, já no arrebol. 
Eu fiquei pensativo. Fiquei olhando para a natureza em derredor. Não sabia que existia outra natureza invisível aos olhos, com tantas inteligências e coisas pra contar e sentimentos pra sentir. Passei a gostar mais daquilo tudo. 
Passei a gostar muito mais da minha bisavó. Ela não era uma velha. Era um ícone. Tinha uma responsabilidade moral, cultural, educacional e espiritual a zelar. Tinha uma inteligência especial para leituras com ideias próprias, certamente herdada da minha avó Danuwa, que não teve muita chance de se educar, já que viveu sua juventude oprimida pelo regime da chibata, mas tinha uma mente brilhante.
 
Ao fim da festa, os grilos e sapos já festejando a noite que chegava, abraçamo-nos todos e nos despedimos de Vó Cloa, de Vô Izidoro e dos demais parentes. 
Saí com um nó na garganta. Mas saí determinado a estudar com mais afinco. 
 
Chegamos de volta aos Alagados já tarde da noite, eu cheio de dúvidas. Queria entender principalmente por que os pensamentos podem interferir na natureza, ao ponto de provocarem destruições ambientais. Fiquei sem saber.
 
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Como aquele domingo de abril de 2004 estava ensolarado, resolvi me arrumar e ir ao local dessas minhas reminiscências, talvez para tentar solver minhas agonias. 
Chegando lá vi que a floresta de São Bartolomeu e Pirajá agora faz parte de uma área protegida pelo governo. É um parque. 
Já não havia mais nenhuma casa dos antigos remanescentes quilombolas do Urubu, nem qualquer rastro da morada de Vó Cloa.
Olhei para as árvores. Não reconheci mais nenhuma, mas certamente elas eram descendentes daquelas plantadas pelos antigos quilombolas e pelos índios tupinambás, que, de certa forma, ainda davam sua contribuição para a comunidade.
O rio do Cobre ainda era um rio vivo em 2004. O último de Salvador. Mas estava agonizando. Seu leito e seus afluentes já estavam bastante contaminados pelos esgotos e pelo lixo dos novos bairros que surgiram nas suas proximidades nos últimos cinqüenta anos. Disseram-me por lá que suas águas já não serviam mais para beber. Até quando a força espiritual dos antepassados evitará seu suspiro final?
Estava certo o negro José Agripino? Estamos já vivendo o fim dos tempos? Mas... Ainda há tempo? 
Na dúvida, resolvi registrar estas lembranças. Por acaso serão elas mais uma manifestação em resposta ao sinal dos tambores, ainda que tardã?
 

 

Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 22/11/2012
Reeditado em 24/01/2014
Código do texto: T3998762
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