Complexa Particularidade III (Quando venci o medo e decidi abrir as portas)
Um dia decidi abrir todas as portas e janelas e deixei a luz entrar. Deixei a luz do dia invadir aquela sala de tal forma ao ponto de sentir meu coração aquecido pelo sol. Senti reviver. Depois de tanto tempo vivendo na escuridão, pude perceber que a obscuridade das palavras não me levaria a lugar algum. Não adiantava tentar bancar o "Estou sofrendo! Por favor, me ajudem." As pessoas normalmente ignoram o sofrimento alheio e só se dão conta da dor quando passam por ela. Só sentindo na pele é que procuram entender os "Por quês" e a falta do brilho nos olhos, bem como a falta do sorriso nos lábios. O fato de não ter sido correspondido, ser traído e esquecido diversas vezes por quem jurou sempre permanecer ao meu lado, um dia quase me matou. É, quase morri. Sempre cultivei uma sensibilidade diferente das demais pessoas. Lamentei durante um bom tempo minhas perdas e vivia de luto pela minha quase-morte. Não conseguia ver que Deus estava me dando uma nova oportunidade para seguir, uma nova vida. Estava cego pela dor e passei a viver nas sombras.
E só eu sei o que se passou dentro de mim durante esse período. Quantas vezes sorri, chorando por dentro. Quantas vezes lutei e relutei para poder me levantar da cama, pois a vida não para pra você tratar suas feridas, suas dores. Ela não espera a cicatrização das lembranças em nossa memória. A gente precisa seguir com o que nos resta em mãos quando alguém te tira o teu tudo, ou pelo menos boa parte dele. A gente precisa viver reversando, por vezes estampando um sorriso maquiado por cima das lágrimas frias. Maquiagem barata não serve, se não borra quando o teu coração decidi chorar. E ser exposto assim diante de tanta gente pode aprofundar as feridas que ainda estão por cicatrizar.
E só eu sou conhecedor do efeito de uma palavra impensada ao chegar em meu peito. Só eu entendo todo o meu processo de cicatrização. Quantas vezes fiz por alguém aquilo que eu sempre soube que nunca fariam por mim e ainda assim continuei a fazer. Não queria me igualar, muito menos me rebaixar. Meu lema sempre foi ser o melhor que posso ser independente do que fizessem comigo, independente do que a vida fizesse comigo. E isso se trata de mim e não das pessoas ou situações que a gente passa ao longo de nossas vidas. Trata-se de quem eu sou, da minha essência, do meu Eu.
Teve um dia que de tanto chorar comecei a sentir falta do gosto de um sorriso em meus lábios. Mal me lembrava que gosto tinha. Comecei a sentir falta do calor de um abraço sabe, de cantar alto sem me preocupar com o tom ou a afinação. Senti falta de correr debaixo da chuva, me embriagar dessa felicidade que um dia foi tão presente e estava resumindo apenas à lembranças. Comecei a me sentir impotente, frágil e inútil. Precisei segurar as pontas diversas vezes. Mas lidar com certas coisas não é fácil, ainda mais quando você faz isso sozinho. Estava deixando escapar a chance de ser alguém melhor. Mas precisava mudar isso, ainda que esse mundo não merecesse quem eu estava disposto a ser, o que eu estava disposto a ofertar. Ainda que o mundo não me compreendesse e me taxassem de louco, besta, imaturo e insensível. Ainda que eu não me encaixasse em nenhum de seus grupos socialmente corretos. Por vezes vi minhas lágrimas refletirem nos olhos de quem eu amava, de quem eu não queria ver sofrer, pessoas que também me amavam. Minha família, meus amigos, meus pais. E isso me fez retirar forças de onde eu jamais imaginei conseguir. Me fez querer dar um basta naquele sofrimento que me consumia de dentro pra fora. Me fez pedir socorro, implorar por ajuda em minhas preces a Deus. Ajoelhei, coloquei o rosto no pó e entendi que até meus gemidos Deus compreendia e entendia. Ele respeitava minha dor. Ele sentia o que eu estava sentindo naquele momento de forma fiel.
E aquela prisão começou a vir abaixo e frestas foram abertas com o abalo da resposta. Uma paz e razão de ser me invadiu a alma. A certeza do que queria, de quem eu era e de qual caminho seguir tomou conta de mim. A prisão veio abaixo e tudo ficou às claras. Pude encontrar meu caminho e com ele recuperei a razão para seguir. E a medida que eu abria as portas e janelas sentia uma nova vida adentrar aquela casa, sentia uma nova oportunidade de mudar e aprender com tudo aquilo. Entendi que o fato de ter passado por aquele sofrimento me tornava pronto para encarar este mundo de frente, encarar as pessoas. Agora era a hora de realmente viver, era apenas o começo. A verdadeira vida ainda estava por ser vivida.
Entendi que Deus apostava em mim e nunca deixou de acreditar na minha capacidade de ser alguém melhor. Que Ele me fez diferente para provocar a diferença onde a indiferença já fazia moradia. Abri as portas e à medida que a luz entrava e me aquecia, deixei seguir com o vento tudo aquilo que me impedia de ver a vida como ela devia ser vista. Deixei partir essa mania de acreditar que é tarde demais para se reconstruir as coisas. Sei que nada mais será como ante e essa é a intenção.