ARDóSIA 42 : O jantar

Duas pessoas completamente diferentes. No visual, na personalidade, nos gostos. Em comum, o coração confuso.

Nervosa, Tânia procura a chave do carro. Onde estava com a cabeça ao enviar o e-mail para Gil? Há momentos em que os hormônios sufocam qualquer raciocínio lógico. Cansada do período de reclusão após a perda do marido, precisou - isso mesmo, seu corpo precisou, implorou - retornar ao jogo da sedução. A fase introspectiva foi importante, reavaliando o curso de seus atos. Passou. Precisa sentir-se viva, e nada melhor que a paquera, afinal de contas. Mesmo que fosse com o caixa do supermercado. Mesmo que seja Gil... Nunca o rapaz chamara-lhe a atenção, ao contrário de Téo, carta fora do baralho após o casamento com Laura. Entretanto, num daqueles dias em que os hormônios chutam os fundilhos do bom senso, Tânia decidiu enviar o e-mail; soube que Gil estava deprimido com o fim do namoro; parecia perfeito. Meia hora após teclar o “enter” que enviou a mensagem, estava arrependida. Iriam caçoar de sua atitude. O fato, porém, é que ele a convidou para jantar. Em sua casa. Hoje.

Não poderia buscá-la, mas, enfim, não se pode pedir perfeição.

Na casa de Gil, ele convenceu o pai, seu Ariosto, a passar um ou dois dias na chácara da irmã Ernestina. Neste exato momento, faltando vinte minutos para as oito da noite, capricha na arrumação da casa enquanto procura a camisa nova que ganhou no Natal. O que não fazem os homens pelas mulheres? Afinal, capricha no visual – há tempos desleixado - por causa de Tânia, que deve chegar em, no máximo, trinta minutos. Ai, sensação desconfortável no estômago! “Espero que a comida caia bem... Principalmente pra ela!”. O rapaz estranhou a mensagem enviada por Tânia, mas estranheza maior foi perceber que, automaticamente, respondeu-lhe com outro e-mail convidando-a para jantar em sua casa. “Algo bem informal. Vamos conversar, tomar um vinho”. É claro que ela percebeu as segundas intenções, matutou depois. E daí? Aceitou! Se vai acontecer alguma coisa diferente ou não, é outra questão. Por via das dúvidas, veste sua melhor cueca.

Embora reconheça como irrisórias as chances de Tânia conhecer seu quarto - pelo menos de maneira mais profunda - Gil esconde as Playboy (“ninguém acredita que adoro ler as entrevistas”) e guarda as roupas em suas respectivas gavetas ou cabides.

Na esquina da Avenida do Escafandro com a Rua da Rebobina, o modelo 1.0 de um carro popular da Volks realiza uma manobra perigosa, a motorista canta pneu retornando num ponto proibido. “Espero que nenhum guarda tenha visto. Não posso mais perder pontos na carteira!”, reclama Tânia, pouco após perceber que esquecera de perfumar-se.

Na cozinha, após a desastrosa experiência com massas do episódio anterior, Gil decide preparar qualquer coisa, menos macarrão. Confere os temperos na geladeira, os ingredientes na dispensa... O melhor mesmo é ligar para o restaurante chinês; entregam rápido. “Comida oriental é chique demais... Vou me dar bem! Se eles entregarem antes dela chegar, claro!”. Isso que dá marcar encontros em cima da hora.

Tânia ainda vai demorar um pouco. Jamais esquecera de perfumar-se antes de sair, mas todo acontecimento tem sua estreia. De volta à casa, revira o quarto em busca daquela essência de romã. “Adoro... muito sexy!”. Mas quem é que tá pensando em sexo, afinal?, corrige-se em seguida. É apenas um encontro de amigos. Quando se contentava com um “levemente doce”, encontra o vidrinho desejado no fundo de uma improvável gaveta. Três borrifadas: duas no pescoço e uma no generoso decote. “Agora sim”, sorri enquanto retoma o caminho da rua.

A campainha toca. Comida chinesa ou Tânia? Na porta, Gil percebe que sequer terminou de abotoar a blusa e o cabelo está despenteado. Pelo olho mágico, alívio. Recebe a comida e a despeja sobre a travessa. Ficou bonito! Desodorante, pente e botões. Tudo pronto. Campainha novamente. Só uma possibilidade, agora.

Não tem mais como voltar atrás. Campainha tocada, a porta será aberta a qualquer momento. “Exagerei no perfume? Ai, meu Deus, este decote é que está demais!”. Um botão fechado; mostra menos, insinua mais. Tânia procura acalmar-se. Apenas um jantar, afinal de contas. Troca a bolsa de mãos. E o hálito? Caraca, estará bom o hálito? Seja como for, não há mais tempo. Porta aberta.

- Que bom que veio, espero que goste de comida oriental.

- Adoro. Não sabia de teus dotes culinários.

- Temos muito a descobrir ainda um do outro, não é mesmo?

Ela apenas sorri. Ele desconfia que deu um passo maior que a perna. Mesmo assim, arremata:

- Tá muito bonita.

- Obrigada. Você também... Aliás, pelo jeito caprichou no jantar. Que música é essa?

- Leonard Cohen, conhece?

Não, não conhece. Caminhando pela casa, Tânia percebe caixinhas de comida chinesa aparecendo no lixo da cozinha. Ri por dentro. O pecado não é grave. Mostra desejo de agradar. A suave música passeia entre o casal. A conversa, porém, não deslancha; mesmo sem admitir, estão ambos um tanto constrangidos. Conhecem-se há anos, mas jamais trocaram mais que três ou quatro frases na mesma conversa. Tais circunstâncias não impedem, claro, não desgrudarem os olhos um do outro.

- Fome?

- Inda não...

- Que tal um vinho?

Cabernet, tinto suave. Duas taças. Alguns sorrisos. Um beijo.

A noite, é claro, não termina aí. Já este episódio...

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 26/10/2012
Código do texto: T3952512
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