A igreja do Reino do Homem
Já faz mais de mil anos que o homem abriu a Igreja em nome de Deus, jurando comprometer-se com elementos voltados para a honra e a glória do Senhor, nosso Deus. Esse fato nos faz notar uma incoerência no histórico humano, afinal, ainda que a Instituição que se denomina Igreja tenha mantido a visão dos homens acerca de quem é Deus, ela abriu a visão dos homens acerca de quem é o homem e o quanto ele não é de Deus.
Conto-lhe, portanto, a história de uma igreja, que, como muitas outras, não era de Deus, mas do homem. Lá, nem todos eram corruptos, havia também os tolos. Os tolos eram os enganados e frustrados pelos corruptos. Mas não crie pena deles, pois o destino dos corruptos é pior do que o engano dos tolos. Como toda boa história, começo contando-lhes sobre um dia de festa, uma noite de batismo. Era o domingo que antecedia a Páscoa, e, por isso, a instituição atraía muito mais fiéis para fazer orações, petições e até mesmo ameaças.
Andrade, o pastor, não era corrupto. Ele era podre. Naquela noite, antes do culto, um homem que fizera parte da vida pessoal de Andrade fora à igreja encontrar o líder da congregação. O homem entrara, cumprimentara funestamente os membros já conhecidos do bairro e encaminhara-se à sala que ficava ao fundo da instituição. O homem trajava uma capa preta um tanto incriminadora e um chapéu que certamente estava guardado há gerações em sua família. Ainda que os trajes negassem, o homem não tinha más intenções, mas sim intenções que eram justamente de seu interesse. Nada que ele fizesse seria injusto ou causaria mal a alguém inocente. O homem de preto batera duas vezes e abrira a porta de madeira envernizada que lacrava a sala de Andrade. Andrade se assustara quando o viu. O homem tirara o chapéu, a capa preta e sentara-se diante de Andrade, que não poderia sair correndo.
O homem fitava Andrade nos olhos enquanto dizia:
-Desejo que meu dinheiro esteja em minhas mãos agora, ou denuncio seu vice-presidente por pedofilia e o senhor por participação criminal.
Andrade gelara ao ouvir essas palavras. O homem emprestara, cinco anos antes, quinze mil reais a Andrade, pois precisava completar a obra de sua igreja. O pastor não possuía um tostão furado e precisava fazer acabamentos da obra. O homem continuara fitando Andrade, os olhos cerrados. Andrade conhecia a situação do homem, que possuía três filhos, esposa, estava desempregado e, cinco anos antes, emprestara todo o dinheiro de sua poupança bancária. Ele não estaria errado se denunciasse Andrade nem se cobrasse com maior veemência seu dinheiro, mas Andrade relutava. O homem olhara Andrade mais de perto, de modo que o lobo em pele de ovelha pudesse sentir o calor de seu bafo e notasse todos os defeitos de sua barba mal feita. Andrade estava sem saber o que fazer, ele tinha todo o dinheiro que o homem pedia, mas tinha também interesses que o forçavam a manter esse dinheiro em caixa. O homem ainda o olhava firmemente, esperando alguma reação, até que Andrade, que gostava de se mostrar machão nas horas de ameaça, não conseguia fazer um movimento sequer diante das poucas palavras ditas por aquele que o observava sem piscar. Andrade pensou em ajudar o homem, mas não queria perder a oportunidade de comprar um apartamento, mesmo tendo uma casa boa. Então, blefou:
-Não tenho dinheiro... posso conseguir hoje?
O homem sentira nojo de Andrade. A congregação do pastor não era nenhuma elite aristocrática, mas poderia render bons lucros, pois era numerosa. O homem saíra de perto do pastor e, ofegante, parecia pensar. Andrade, mais tranquilo e ciente de sua missão quase impossível, dissera:
-Consigo os quinze mil e te dou até amanhã de manhã, com certeza, dessa vez é sem falta, não precisa tomar nenhuma atitude.
-E tem mais! Se não me entregar, eu conto a verdadeira história para essa gente. – Disse o homem, com maior veemência.
-Mas você não disse que me denunciaria? – Tentara ironizar Andrade.
-Não falo de você. Nem do seu vice-presidente. Falo da verdadeira história sobre os dízimos e as ofertas e todas as falcatruas da sua igreja. Ou você já contou as histórias detalhadas para eles? – O homem apontava para a porta, que dava na Igreja, enquanto Andrade sentia uma gota de suor descer por sua testa gélida.
-Tudo bem. Dou minha palavra, que valerá minha liberdade, como você mesmo sabe.
Andrade já houvera dado inúmeras desculpas para o homem, mas agora era ele quem estava na situação de risco, e perder seu futuro apartamento valeria mais a pena do que ir para a cadeia, ter que gastar com a fiança ou perder sua congregação. O homem confirmara com a cabeça, colocara o chapéu, a capa, e saíra da sala. Andrade inspirara e soltara o ar com alívio, pois sua lábia era melhor do que você, leitor, consegue imaginar. A festa de sua congregação começara há alguns minutos, Andrade saiu da sala, o coração pulsando com velocidade atípica, as mãos trêmulas, a garganta seca e pensamento vidrado no objetivo: tirar pelo menos oito mil reais daquela congregação naquela noite.
Andrade viu toda aquela gente aplaudindo, cantando, pulando maravilhada com o poder de Deus que ele próprio tanto pregara. Estava na hora de Andrade sensibilizar o povo, de modo que eles pudessem pensar que a igreja estava afundando e que ele precisava de dinheiro para mantê-la. As músicas que estavam sendo cantadas eram entoadas por uma mulher que ganharia muito mais se trabalhasse na Rede Globo, mas sempre preferira enganar em nome de Deus: Fabíola era esposa de Andrade, pastora da igreja e, literalmente, uma grande artista, quando, no script, o tema era enganar as pessoas pela emoção. Ela chorava, emocionada, falava duas palavras em algo que se assemelhava ao hebraico e fazia o povo vir abaixo, gritando: “Glória! Aleluia! Amém!”. Ainda que seja possível se emocionar com palavras em hebraico, acho que o momento de cânticos é bem oportuno para usar esse artíficio; mas o pior é o povo acreditar que aquilo é hebraico!
Andrade ficava mais nervoso a cada momento que se aproximava o momento de falar para a igreja. Ele já era pastor há quinze anos, mas, num momento como esse, até doutor caga no penico. Fabíola acabou o último cântico, limpando as lágrimas que borravam sua maquiagem de artista, notou o quão pálido estava Andrade e passou o microfone para ele, perguntando-se o que houvera com o marido, que passara bem durante a tarde. Andrade ajeitou o colarinho, aproximou-se do púlpito e começou:
-Que a paz de nosso Salvador esteja com todos!
E a igreja veio abaixo: “Amém”, sem nem mesmo imaginar que Andrade fizera isso para bolar uma fala convincente para o continuar. Andrade enrolou mais um pouco orando e depois comentou sobre um fato daquela semana:
-...nesta semana, morreu um dos grandes ídolos do humor brasileiro, um homem que sempre se portou como homem de bem, homem que buscava a felicidade das pessoas por meio da arte, mas infelizmente sofreu em seus últimos dias. Que Deus faça Chico Anysio descansar em paz!... e esse fato nos faz ver que até mesmo aqueles que fazem o bem são provados por Deus. Até mesmo aqueles que fazem o bem passam por tribulações que pedem provas de sua fé até o último momento. Deus sabe de todas as coisas. E sabe, inclusive, da situação de nossa querida igreja. Irmãos, na última semana, nossa conta de luz venceu, como é normal. Mas, quando fui pagar, olhei o caixa da igreja, que é abastecido a cada culto e não tínhamos o suficiente para pagar a conta de luz. Irmãos, uma igreja não possui apenas conta de luz, uma igreja possui conta de telefone, conta de água e, no nosso caso, infelizmente, um aluguel que vem sendo aumentado a cada mês e algumas dívidas.
Fez-se silêncio na congregação, todos estavam totalmente atentos a tudo o que o pastor dizia, inclusive o homem de preto, que acabara ficando para ver como Andrade se sairia naquele culto de negócios importantíssimos.
-Irmãos, o aluguel de nosso templo é caríssimo e, por isso, eu preciso do apoio de vocês para manter a casa de Deus! Assim, você que está aí e não dá o dízimo, fique sabendo que você é um ladrão! – enquanto disse “ladrão”, Andrade aproximou o microfone de sua boca babada para enfatizar o termo - Porque quem não dá dízimo está retendo o que é do Senhor, ou seja, está roubando de Deus! Você que está aí e sabe que não se pode dormir direito quando se rouba do Senhor teu Deus, faça com que Deus, com toda sua ira e força não te castigue.
A igreja estava totalmente chocada pelo fato de o pastor estar chamando pessoas que não possuíam dinheiro para comprar a comida do mês de ladras. Mas o homem passa dos limites da ética na hora da "necessidade", exatamente pela maldita vaidade. Andrade, aparentemente calmo, continuou a tremer, dizendo:
-Por isso, a casa do Senhor precisa de você, não só hoje, mas sempre. Se você quiser a tua prosperidade financeira, tu não podes roubar do teu Deus. Venha até o altar, pegue seu talão de cheques, ou seu dinheiro, ou algum bem que você tem em mãos, coloque no altar da forma que seu coração pedir, afinal, até os que não roubam do Senhor são obrigados por Deus a dar sua participação, para não passarem a roubar. De acordo com minhas contas, nossa igreja possui uma dívida de dez mil reais, mas acho que oito mil já seriam suficientes para saciar nossas principais necessidades financeiras, nós vamos alcançar um valor muito maior que esse, amém, igreja? – A igreja, roboticamente, respondeu um altissonante “amém” à súplica do pastor ladrão e vaidoso que possuíam - Irmão, você que não dizima, não pense que seu dízimo vai ser pago com essa mínima e necessária doação, você sempre deve a Deus, afinal, quem é que não dorme te olhando? Quem é que faz o universo se mover a seu favor quando você precisa? Não custa nada fazer uma devolução de algo que não é seu, e mesmo que fosse, Deus merece. Vamos aplaudir esse Deus maravilhoso e, ao som do louvor, devolver o que não é nosso ao Senhor.
A igreja aplaudiu e, como um só organismo, fez o que o pastor pedira, como um rebanho amedrontado. As ovelhas devem sim respeitar e obedecer ao pastor, mas, quando uma extorsão está tão aparente, elas podem pensar também, sendo que isso é difícil em certas circunstâncias, como a que Andrade colocou seus fiéis: uma situação de provar a fé, para o homem, não para Deus, que nunca veio pedir dinheiro a ninguém como prova de fé, né?
Andrade estava abismado com o próprio poder. Fabíola olhou-o, enquanto os fiéis depositavam o dinheiro nas urnas, com o maior orgulho do marido. Andrade ria de si mesmo, até que viu o homem que o ameaçara em sua sala, ainda de preto, com chapéu, ali, sentado na segunda fila de bancos de sua igreja. Andrade tremeu um pouco mais, mas tranquilizou-se ao voltar a observar os cristãos que estavam ali, doando seu salário, seu esforço, sua dignidade, em nome de um Deus tão puro que não olha o que você tem no bolso, mas sim o que você tem no coração.
Certamente, leitor amigo, se ainda não desistira desta narrativa, deve estar pensando algumas coisas deste humilde autor, mas tu hás de convir, não há homem confiável; e o fato de ter Deus não torna homens confiáveis, afinal, ainda que sejam de Deus, são homens.
O culto teve todas as outras partes que Andrade sempre propusera aos fiéis e, antes de terminar, Andrade, com medo de não ter arrecadado a quantia suficiente para o pagamento do homem, disse:
-Irmãos, para terminarmos nosso culto e irmos em paz para casa, gostaria de fazer um apelo. Um apelo não por mim, Andrade, mas pelo homem de Deus que aqui está. Minhas finanças vão de mal a pior e meu tempo está totalmente empregado na obra do Senhor, por isso, não tenho como ganhar dinheiro para manter minha família. Então, igreja, gostaria de pedir a sua colaboração para minha vida pessoal. Você que está aí e pode, venha e ajude seu pastor, que certamente será abençoado em dobro.
Ao falar isso, inúmeros fiéis se levantaram para doar suas últimas notas. Ali, havia fiéis com o único dinheiro do dia, com necessidade de pagar passagem para voltar à casa, mas doavam com a crença de que sua necessidade significava o fim das necessidades financeiras de seu líder.
Enfim, o culto acabou e Andrade sentia-se com um sentimento de superioridade imensurável. Ele já houvera conseguido muitas coisas daquela congregação, mas certamente conseguira ainda mais dinheiro naquela noite de gala. Andrade esperou todos os fiéis irem embora, fechou-se em sua sala com Fabíola, abriu os recipientes e contou o dinheiro. Ele conseguira arrecadar nada mais nada menos do que quinze mil reais, a quantia exata que precisava para liquidar sua dívida com o homem de preto que o cobrara mais cedo. Andrade pulava de alegria enquanto via todo aquele dinheiro. Fabíola aproximou-se, olhando todo aquele dinheiro e foi dar um caloroso beijo lábios do marido, que tirou sua blusa e jogou-a no chão, de modo que fizeram sexo ardente, ali mesmo, na igreja, antes mesmo de ensacar o dinheiro para irem embora. Eles rolaram pelo chão da sala de Andrade e terminaram a noite deitados, suados, tendo ainda que ensacar todo o dinheiro para sair.
Ao fim daquela noite emocionante e início de madrugada, Andrade e Fabíola guardaram o dinheiro num saco, fecharam a sala, olharam para o espaço da igreja e saíram para trancar a porta principal. Andrade e Fabíola saíram para pegar entrar no carro, que fora comprado com verba santa, ou melhor, que Andrade pedira a Deus. Andrade entrou no carro, ligou-o e foi para casa, dormir uma noite tranquila, mas um tanto ansiosa com o pensamento no homem que fora visitá-lo.
Ao outro dia, o homem passou pela igreja, como havia dito. Pegou o dinheiro de um Andrade sorridente, que parecia entregar aquele pacote pardo pela própria vontade, sem nenhuma coação, assim como as pessoas deveriam doar na casa de Deus. O homem, que ficara quieto nos poucos minutos que permanecera na sala do pastor, disse, antes de bater a porta para sair:
-Você é nojento.
Isso ninguém precisava contar. Andrade sabia.
No outro domingo, o homem apareceu novamente na igreja, o que trouxe uma sensação de medo a Andrade, que, imediatamente, começou a imaginar as possibilidades que trouxeram a presença daquele homem ali outra vez.
Andrade iniciou o culto normalmente, sem nenhuma mudança em seu cronograma. Chegou, pois, o momento dos dízimos e das ofertas, que Andrade escolheu para complementar a história da semana anterior, oportunamente.
-...a necessidade de nossa igreja ainda não foi suprida, irmãos! Exatamente porque ainda existem ladrões aqui nesse templo sagrado. Ainda nesta semana, com sua igreja necessitando de sua contribuição, de sua devolução do que é do Senhor, você vai continuar a reter o que não é seu?
Ouviram-se murmúrios por todo o templo. Os membros estranhavam a posição de Andrade sobre uma coisa que ele sempre se mostrara mais liberal – tolos, não sabiam que era pra influenciar eles a doar mais, mas nunca conseguira.
-Podem se encaminhar para cá, com sua contribuição, e, ao som do louvor, doar com alegria, pois não admito que existam ladrões neste lugar santo!
A pastora começou a entoar um louvor, quando, de repente, um homem se levantou – o tal homem, que cobrara Andrade na semana anterior. Dizendo:
-Discordo! – A igreja se calou – Pastor, o que o senhor me diz do que Paulo fala aos Coríntios, em sua segunda Epístola, capítulo 9, versículo 7? "Cada um contribua segundo propôs no seu coração; não com tristeza, ou por necessidade; porque Deus ama ao que dá com alegria."
A igreja toda prestava antenção no homem, que declamava as palavras bravamente para todos. Andrade olhava-o, estupefato.
-Então, pastor, o que me diz?
Parte da congregação que estava de pé voltou a se sentar, a outra parte continuou o caminho até a caixa de dízimos da igreja. Andrade não conseguia imaginar o que dizer para o homem, por isso, disse:
-Um lobo está entre nós! Não deem ouvidos ao demônio que usa a palavra de Deus como brinquedo! Continuem a fazer o que o líder do rebanho divino lhes diz!
O homem esperava uma reação como essa naquele momento, por isso manteve sua tranquilidade diante do ocorrido.
O culto acabou, todos foram embora e, quando Andrade saía com Fabíola, encontrou o homem de preto lá fora. Andrade, sentindo-se superior diante de toda a sua demoníaca capacidade de coagir os fiéis, olhou para o homem e disse:
-Como vai, seu grande idiota?
O homem riu ironicamente e disse:
-Vou tão bem quanto o senhor.
Andrade riu e deu as costas ao homem, que o esperou sair, arrombou a igreja com uma grande chave de fendas e colou inúmeros cartazes dentro. Cartazes que diziam a verdade ao povo sobre Andrade, como a quantia arrecadada semanalmente e a falta de necessidade que a igreja tinha para receber tal valor; o fato de Fabíola embolsar o dinheiro da cantina toda semana; o fato de o povo poder doar quando quer e quanto quer e outras muitas coisas que o povo deveria tomar conhecimento.
No culto seguinte, o homem foi até a igreja ver a repercução dos cartazes entre os fiéis e para assegurar que todos os cartazes mantinham-se colados ali. O povo parava para ler, enquanto murmuravam e falavam freneticamente. Até que um irmão que conhecia o homem o parou, dizendo:
-Quem seria o monstro que fez a barbaridade de espalhar tais mentiras na casa de Deus?
O homem ouviu aquilo e começou a entender que o comentário daqueles que liam os cartazes era de raiva com quem os colara. O homem deu as costas e voltou à sua casa, com uma certeza maior que toda que teve na vida: o povo é cego por causa da manipulação, mas, mesmo quando a verdade lhes é apresentada, não querem enxergar.
O homem lembrou-se de que não só Andrade era corrupto em seus atos dentro da igreja, mas muitos outros líderes falsos também o eram. Assim, visto que o povo não queria acreditar na verdade, o homem chamou sua família e orou, pedindo a Deus que sua justiça fosse feita na hora certa e que o povo permanecesse cego, se fosse melhor para eles.
Pois, se a justiça dos homens não extermina todas as corrupções e safadezas, a justiça de Deus certamente o fará. Porque a justiça de Deus vem na hora certa - ainda que tardia a nosso ver -, mas ela nunca há de falhar.