ARDóSIA 40 : Tô voltando!

Os olhos alternam entre a rua e as letras impressas no papel. Roni está parado, no meio da calçada, apreensivo. Olha pra trás; pra frente. Todas aquelas pessoas são ameaçadoras. Dobra a carta várias vezes, fazendo-a caber toda em sua mão. Abre novamente. Relê. “Vc nao podia joga a carta fora. Agora vai paga. Asar pra toda vida!”. Só isso. Impresso em letras enormes, assustadoras. Roni ia até a casa de Gil, verificar se o amigo está melhor, recuperando-se após perder o grande amor. Na saída, encontrou o envelope na caixa de correio. Agora, no meio do caminho, está apavorado. Não devia ter se desfeito da carta em que Santa Edwiges ordenava-o prosseguir com a corrente, encontrando assim prosperidade e riqueza. Jogou-a fora, culpa de Laura. Agora terá contratempos e miséria. A segunda mensagem confirma isso. Santa Edwiges tem impressora a laser.

Ele dá dois passos, ainda sem saber para onde ir, e esbarra numa senhora em cores escuras.

- Desculpa, dona!

- Só podia ser você mesmo, né, Roni?

- Tânia! Tudo bem? Desculpa, tô indo. - O assustado rapaz vai, não sem antes conferir a justa blusa, realçando os seios, e que não combinava muito com a recente estética da viúva.

Tânia sempre achou Roni desengonçado e tonto. Agora tem certeza. Segue seu caminho ao mercado. Ainda mantém as roupas em tons sóbrios. Saia azul marinho, abaixo dos joelhos, e blusa abotoada até o pescoço. Os dias têm sido “suportáveis” desde que retornou do hospital. Acostumou-se aos olhares e, vez ou outra, aos comentários cochichados. Tais contratempos não a impedem de caminhar algumas calçadas a mais até o “Mercadinho Plutão”, um tanto mais distante que o “Barateco”, mas com gôndolas melhor distribuídas e ofertas consideráveis. E, mero detalhe, um dos caixas tem lindos olhos verdes...

Ao entrar no estabelecimento, nem repara no senhor encostado numa das colunas. Camisa florida, óculos escuros, 50 e tantos anos, Virgínio é o último forasteiro em Ardósia. Aos poucos, todas as pessoas que chegaram na cidade recentemente foram retomando seu caminho; restou ele, que precisou escapar dos comerciantes sedentos por sua cabeça. Bem ou mal, acertou as contas. O problema é que está ainda mais duro; “não vou evadir-me de tal município com menos numerário do que quando aqui ingressei”, refletiu em sua lógica filosofal. E aquela mulher de aparência frágil parece o alvo ideal. “Tem manejo de crente solitária. Sem aliança. Tem grana. Golpe fácil, quase perde a graça”. Entra no mercado e a busca pelos corredores.

Tânia escolhe um vinho, entre as opções oferecidas logo no início do “Plutão”. Virgínio finge procurar outra bebida; estaciona ao lado da moça.

- Sempre achei que Deus está nos vinhos. Sem dúvida, deveras uma bebida abençoada!

Tânia sorri, coloca um Cabernet no carrinho e segue pelo corredor. A abordagem inicial não rendeu o fruto desejado. O pilantra não se mexe, calculando as próximas palavras. Falta-lhe experiência com evangélicas, embora o golpe na crente de Marília tenha lhe rendido uns bons trocados. Sua especialidade são viúvas mas, enfim, é preciso diversificar. Ela está nos frios, entre queijos e iogurtes; com as mãos atrás, passos calmos, Virgínio aproxima-se quase desapercebidamente.

- Os preços não param de subir! Jesus amado!

- Isso vou ter que concordar... - suspira Tânia, sem tirar os olhos da embalagem de manteiga, tentando descobrir se vem ou não com sal.

- Puxa, não pude deixar de reparar na voz da senhora. Suave, quase um louvor. Não quero parecer abusado, mas, aleluia, a senhora também tem olhos abençoados!

“Mas que tanta bênção tem esse homem?”, pensa ela, olhando feio ao galanteador de capela, horrorizada com a bizarra combinação de camisa florida, conversa divina e barba mal feita. Virgínio percebe estar em desvantagem; “hora de tirar a equipe de campo”, não sem antes um derradeiro sorriso. Não é tão fácil quanto imaginara... Decide cuidar de sua vida e comprar macarrões instantâneos para cozinhar na pensão. Depois de pegar dois pacotinhos de suco em pó, vê seu alvo em direção aos caixas. “Última chance! Quem sabe?”. Ele praticamente se joga em frente de Tânia; em seguida, dá um passo atrás.

- Pode passar à minha frente, eu lhe permito a honra...

Ela ia dizer que ele é quem havia “furado” a fila, mas achou melhor não estender o conversê. Não teve sorte...

- É uma coincidência dos céus que nos encontremos novamente. Desculpe, senhora, mas creio que Deus quer nos enviar um sinal.

- Mas que conversa mole é essa? - a mulher perde a paciência - Deus queira que eu nunca mais encontre você! Pior que essa tua conversa, só a comida que você tá levando pra casa. Deus me livre!

Constrangido, Virgínio pede “minhas escusas” e dirige-se ao caixa ao lado, cuja fila está inclusive menor. Recomposta, Tânia observa o rapaz atrás da caixa registradora; sim, os olhos são esverdeados. Tânia abre um botão na blusa. Percebe então como o jovem manuseia os produtos com destreza, registrando os preços e colocando-os nas sacolas. Outro botão. Ao passar sua compra, Tânia é puro sorriso; com o novo decote, a blusa perde seriedade. O rapaz, pouco mais de 20 anos, retribui a simpatia. “Que dentes lindos!”. Ao pagar a conta - com cartão de débito - ela pergunta se precisa fornecer o número de telefone; ao receber a resposta negativa, sorri maliciosamente: “Que pena...”. O moço devolve o sorriso, sem transparecer, porém, se era apenas simpatia com a clientela ou interesse pessoal. Não interessa. Aquela sensação - que há tempos não sentia - faz Tânia sentir-se viva novamente. E forte. Sai do mercado em passos largos, cabelo solto, sorriso escancarado e o corpo leve.

Sequer percebe o inconveniente paquerador caminhando murcho em direção à sua Brasília 76. Virgínio decide ir embora; a cidade não mais lhe parece tão atraente. Bem fizeram os outros, que se mandaram. Após arrancar com o carro, quase atropela um rapaz que atravessa desatentamente a rua.

- Tá louco? - grita ao sujeito que tropeça de volta à calçada. O motorista nem se importa com o fato dele cair sentado. Virgínio vai embora. Pra sempre.

O tal pedestre, carta na mão, pragueja contra a sorte que o abandonou.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 12/10/2012
Código do texto: T3928793
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.