O Meu Avô - O Retoço da Tapera
Era pros lados de Caçapava do Sul, não sei ao certo onde... O que sei é que o mundo tava se desmanchando em chuva e o céu parecia que ia desabar a qualquer momento, e o meu avô que de cancha em cancha cruzava por azar àquela hora por tais matos escuros, tendo como única companhia sua querida égua de estimação e uma garrafa de canha, bem cheia, galopava largo com o poncho molhado e as botas cheias d’água. A coisa começou a apertar, era relâmpago, era trovão e era raio; e o meu avô, embora não fosse assustado, tava se vendo azul em meio ao aguaceiro, a égua velha tava pedindo arrego e o poncho de lã de ovelha já pesava pra mais de quarenta quilos. O meu avô foi obrigado a arreganhar os dentões amarelados quando ao longe, num clarão da tempestade, pode avistar uma velha tapera – habitação abandonada -, tocou-se imediatamente pras bandas do casebre, podendo inclusive visualizar uma enorme figueira no costado do rancho, que serviria de ótimo repouso pra sua pobre égua cansada de guerra. Quando o meu avô virou-se de frente pra tapera, logo após manear a égua, percebeu um detalhe diferente, algo que havia passado despercebido e só agora lhe saltava aos olhos, era uma luzinha vermelha acima da porta de tabuão: - Será? Falou consigo o meu avô. – Será que é o que eu estou pensando? Deu três passos o meu avô e a chuva parou de vereda, ele olhou pro céu e no lugar de nuvens sombrias e pesadas viu milhares de estrelas e uma lua tão grande que parecia que ia cair por cima do Rio Grande do Sul, deu mais três passos e pode ouvir um coro de gargalhadas e um ronco de gaita de oito baixos. Era aquilo mesmo, era aquilo que ele pensava, era uma algazarra, uma anarquia, um reboliço, era disso que ele estava precisando: - Tchê, mas que retoço! O meu avô, pra evitar incomodação, já levou na mão sua garrafa de canha, bateu na porta e quem abriu foi logo a dona da bodega, uma castelhana bem pintada, de cabelo solto e vestido encarnado: - Vamos hombre! Ven con nosotros! Na primeira bombeada que o meu avô deu em roda da sala, pôde se interar de quem eram suas companhias pra noitada, um velho de barba moura, um gaúchão barrigudo, e um magricelo bigodudo, todos negros, no mais, haviam umas três ou quatro chinas do cabelo ensebado, além do gaiteiro, que espichava aquela acordeona e de marca em marca entornava nos queixos um garrafão de vinho tinto. O meu avô ficou por ali, escorado no balcão, meio escanteado, beliscando a canha, quando foi surpreendido de repente por uma indiazinha bugra que atravessou a sala peladinha como nasceu, coisa mais linda do mundo, carnes firmes, faceira que só vendo, se atirou no colo do negro barrigudo e de um gole só, bebeu todo o copo de cachaça do vivente que soltou uma baita gargalhada. Isso acabou por contagiar a todos no ambiente, inclusive à dona da sala, a castelhana, que tinha um risadão tão fino que chegava a doer nos ouvidos: - La noche es nuestra! Um homem alto vestido com uma farda militar muito antiga, que nem eu e nem o meu avô saberíamos explicar de que tempo era, enfiou o pé na porta e com uma espingarda de dois canos perguntou em voz alta: - Quem aqui é lanceiro? Levantou-se a negrada! O soldado sem pestanejar enfiou pólvora no bucho do barrigudo e em seguida executou também os outros dois. A castelhana gritou: - Nuestra Señora de Luján, por Dios! O soldado deu um tiro na cabeça da dama argentina que fez voar miolos por todo canto e com uma perícia impressionante recarregou a espingarda e seguiu distribuindo fogo em toda gente, inclusive no gaiteiro! O meu avô, que nunca gostou de judiaria, deu a volta pelas costas do milico e saltou intentando gravatear-lhe pelo pescoço, mas, por incrível que pareça, o corpo do meu avô cruzou por dentro do homem fardado, como se ele fosse feito de sombra... O meu avô arregalou os olhos e viu a chuva voltar com mais força do que nunca, em fração de segundos a escuridão enegreceu o lugar, e não era possível enxergar nada... O meu avô saiu andando de quatro pés, sentindo nas mãos as ervas daninhas que forravam o chão... Um relâmpago clareou a tapera e o meu avô viu que o rancho estava completamente destruído e que por todo lugar havia ossos e caveiras espalhados... Foi nessa hora que o meu avô gritou desesperado: - Meu Deus do céu! Perdi! Perdi minha canha!