O Meu Avô - Cemitério dos Castilho

O finado meu avô foi um gaúcho que viveu até noventa anos, tendo nascido no ano de mil novecentos e nove. Em um ponto qualquer da primeira metade do século XX, vinha meu avô cavalgando pelo mato fechado em noite de grande temporal com tormenta de vento. O meu avô não era assustado, andava sempre bem pilchado*, faca e revolver na cinta, chapéu de aba larga e esporas bem afiadas. O meu avô, enquanto solteiro, andava meio que sem pago* pelas terras do Rio Grande. Andava de campanha em campanha sem uma moeda na guaiaca*, não trazia mais que uma guampa de cachaça, um rolo de fumo em rama e sua égua de estimação. O meu avô nessa noite vinha cortado-de-alça-de-gaita*, porém, não se entregava de jeito nenhum, e pra mostrar que era taura* e não se atarantava com qualquer clarão de raio ou estrondo de trovão, bebeu um gole de canha*, deu um laçasso na égua e gritou um sapucai* no meio do mato. Logo após essa cena meu avô encontrou uma clareira, o mato se acabou de repente ao tempo em que os trovões se intensificaram, meu avô estava com as vistas embaçadas por conta da chuva e da cachaça, porém um relâmpago fez a noite virar dia e o meu avô pôde enxergar com clareza tudo que havia a sua frente. O meu avô estava diante de um pequeno cemitério, rodeado por uma velha cerca de arame farpado comida pela ferrugem, com quatro ou cinco capelinhas pequenas e umas duas dúzias de cruzes cravadas no chão. Cemitério dos Castilho. Antigamente nas estâncias* do Rio Grande os fazendeiros construíam em suas próprias terras um cemiteriozinho pra enterrar os familiares e a peonada* que viesse a morrer pelo campo, com o passar dos anos, por motivos de qualquer natureza, a maioria desses cemitérios restavam abandonados no meio do mato. Meu avô fez estancar o passo da égua e tirou o chapéu em gesto de respeito ás almas dos infelizes que ali jaziam. O céu foi partido de ponta a ponta pelo ziguezague cor de fogo de um relâmpago nunca antes visto seguido por um trovejão que de tão forte chegou a surpreender meu avô que, como já lhes disse, não era assustado. O meu avô equilibrou-se como pôde sobre o lombo da égua, pois, não cairia do cavalo assim no más, só que a égua se pegou violenta e atirava com as quatro patas pra tudo quanto era lado. O meu avô esteve gineteando* por quase uma hora, ele não queria se entregar pra égua, seria para ele um grande fiasco, mesmo não havendo testemunhas, coisa bem feia, levar um tombo de sua égua de estimação. Entre clarões, poças, água e estouros, depois de muita luta, o meu avô caiu... Enterrar o focinho no barro não era, para o meu avô, uma coisa normal, então ele se enfureceu, levantou-se com o intuito de dar uma lição naquela égua; surpreendentemente, a égua mesmo tendo derrubado o meu avô, não se deu por vencida e partiu pra cima dele como que quisesse atropelá-lo ou pisoteá-lo. O meu avô disparou como pôde, correu feito um louco, gritava com o animal usando de autoridade, a égua não reconheceu o dono e cruzou por cima do meu avô fazendo-o cair por cima da cerca do cemitério e lanhar o couro nos arames enferrujados. A égua entrou cavalgando cemitério adentro e se parou corcoveando e pisoteando as cruzes por algum tempo, meu avô pôs-se de pé com muita dificuldade, suas costas estavam vertendo sangue, a égua deu meia volta, levantou a cabeça e se veio de novo... Meu avô encheu os olhos d’água, levantou a face pro céu, fez uma breve oração, um sinal da cruz e puxou do revolver, deu um tiro na testa da sua égua querida que foi ao solo fazendo saltar-lhe um esguicho de barro na cara. O animal estava tomado por algum espírito mau. Meu avô juntou sua mala de garupa que achou extraviada em meio a cruzes e dela retirou seu velho poncho, entrou numa daquelas capelas, e fez cama em meio a tumbas e gavetas dos tempos da revolução. O meu avô dormiu ali feito um anjo durante a noite toda, quando acordou pela manhã estava um dia lindo, ensolarado e primaveril, levantou-se e primeiramente enxergou sua guampa de cachaça enterrada no barro, logo adiante avistou sua égua pastando a grama verde do portão do Cemitério dos Castilho; o meu avô tomou uns goles de canha, juntou as tralhas e seguiu viajem, pois, antes do sol se pôr tinha que estar em Caçapava do Sul. Êra cavalo!

Gauchês

Canha: Aguardente.

Cortado-de-alça-de-gaita: Cansado.

Estância: Fazenda.

Ginetear: Montar em cavalo bravo.

Guaiaca: Recipiente onde se guarda dinheiro.

Pago: Terra natal.

Peonada: Empregados de fazenda.

Pilchado: Vestido á moda gaúcha tradicional.

Sapucai: Brado típico dos gaúchos campeiros.

Taura: Forte e corajoso.