O conto do Negro
A aula era teórica. À noite, depois de um dia de trabalho, encarar a faculdade não era tarefa das mais fáceis, mas sempre fora uma tarefa no mínimo divertida. Na faculdade, e só depois que terminamos é que descobrimos, aprende-se uma profissão durante a aula e muito sobre a vida fora da sala.
Mas ela continuava ali, era boa aluna e não gostava de ficar saindo da sala, por mais que tivesse vontade de ir ao centro acadêmico tomar um mate ou de dar uma passada no corredor vizinho, ver se avistava algum olhar.
Quando as aulas eram desgastantes aproveitava o tempo para escrever, tinha lápis e papel disponíveis, poderia deixar o pensamento ir longe. Mas naquele dia não havia inspiração.
O sono vinha, ela olhou em volta, poucos escutavam as palavras do professor, alguns brincavam no celular, um colega lá no canto puxou a boina sobre a testa para esconder os olhos e cochilava, pra não se dizer que dormia em sono profundo. Duas colegas, lá atrás, se enredavam numa prosa cochichada, e outra, mais à frente, fazia dobraduras de papel. Vasculhou a bolsa, pegou um livro que já havia virado um companheiro, Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto, abriu na folha certa e pela "trocentésima" vez iniciou a leitura do seu conto preferido: "O Negro Bonifácio".
Ela não se cansava de ler aquele conto, a história era sangrenta, violenta... terrível, mas aquele enredo a prendia. Era uma xucreza.
Ia lendo e imaginando cada cena, os versos do cajetilha, a carreira, o vinho no bolicho, o lenço com os sequilhos... a peleia. Lembrou da amiga que estava em outra sala, em outro curso, e que era companheira de sonhos e ideais. Um rancho num fundo de campo, um mate recém cevado, uns potros para domar... um Mariano Luna pra dividir os dias. Ah como eram lindos e poéticos os sonhos de moça romanceira. Temos que convir que não eram nada práticos, mas naquela fase da vida tudo era começo, havia espaço para muitos sonhos, possíveis ou não. E o Mariano Luna, ah esse era o príncipe encantado delas, mas viria de pilchas ao invés de roupas caras da realeza, e ao invés de um cavalo branco viria montado num baio. No lugar do palácio um ranchito barreado num posto d'alguma estância.
Ela continuava lendo até que pegou o celular, essas coisas modernas até que de vez em quando prestam pra alguma coisa, havia comprado uma promoção de 500 torpedos, podia mandar mensagens arriviria, então começou a escrever: "a Tudinha era a chinoca mais candogueira que havia por aqueles pagos, um cajetilha da cidade, duma vez que a viu botou-lhe uns versos muy lindos, pro caso que tinha um que dizia que ela era uma... Chinoca airosa, lindaça como o sol, fresca como uma rosa. E o sujeito quis retouçar, mas ela negou-lhe estribo, porque já trazia mais de quatro pelo beiço, que eram dali da querência, e aquele tal dos versos era teatino."
Enviou a mensagem. Dez centésimos de segundo depois, recebeu a resposta: "minha Nossa Senhora, que coisa mais linda, de onde tirou esses versos?"
Riu sozinha, o começo da história era muito lindo e a aula da outra deveria estar tão cansativa quanto a dela. Respondeu falando do livro, do conto e do autor, como podia a amiga tão gostadeira da cultura gaúcha não conhecer aquela história?
Ficaram trocando mensagens até que não pode mais agüentar, saiu da sala. Já encontrou a amiga no corredor, que não podia esperar mais queria ler e saber tudo sobre o conto.
Que programa cultural!
Passaram no centro acadêmico, pegaram a cuia e a térmica, sentaram num dos velhos bancos da universidade e começaram a leitura, não leram apenas o Negro Bonifácio, mas todos os contos do livro.
Ficaram proseando sobre os sonhos (um rancho num fundo de campo, um mate recém cevado, uns potros para domar... um Mariano Luna).
Ainda estavam ali no banco, com o livro aberto e os cadernos por roda, o mate já frio, quando o professor passou. Ele já era um senhor de idade de cabelos branquinhos, mas muito simpático, fazedor de graças pelos corredores para atrair a atenção dos alunos. Quando as viu não se conteve:
- Então você fugiu da minha aula né?!
Imediatamente a face corou, ela não costumava fazer isso. Não podia perder a confiança do professor que a ajudava inclusive em outras matérias quando ela precisava, além do mais ele era tão querido. Imediatamente inventou uma desculpa:
- Profe, eu não queria perder sua aula, estava tão interessante, mas tenho que entregar uma resenha desse livro de E C O N O M I A amanhã, e não estava nem com a metade pronta, precisei sair para tentar terminar e dar tempo de passar a limpo essa noite.
O professor sabia que trabalhar de dia e estudar a noite era complicado, acreditou na história e até se ofereceu para revisar a resenha antes que ela entregasse. Saiu andando pelo campus com sua pasta cheia de papéis, as duas se olharam, ainda com as bochechas vermelhas, nisso o colega, o mesmo que cochilava debaixo da boina, e que acabara de ouvir a conversa com o professor, passou repetindo:
"A mais santinha tem mais malícia que um sorro velho".
Alva Gonçalves
Escrito em 12/03/2011