ARDóSIA 38 : Bênção de Sta. Edwiges
“A sorte foi enviada a você, que terá a felicidade de comprovar! Não guarde esta carta, pois ela deverá sair de suas mãos em 96 horas. Um oficial de RAF recebeu US$ 170.000, mas perdeu tudo pois quebrou esta poderosa corrente energética”.
- Como assim, corrente energética? Que energia ele tá falando?
Téo, ao volante do carro estacionado, ignora a pergunta de Roni, ao seu lado com a carta na mão. O texto diz que, se mantiver a tal corrente, poderá ficar milionário. Quem sabe, bilionário! Por outro lado, quebrando-a, perderá até a esposa que não tem. O teor da mensagem deixa Roni alarmado.
- Porra, Téo, presta atenção! Isso aqui pode mudar minha vida!
O amigo está mais preocupado com a obra da casa, que não parece lá muito adiantada; um mês de trabalhos e nada dos alicerces finalizados. Observa, nervoso, os pedreiros conversando sentados; mesmo percebendo a chegada de quem lhes paga pelo serviço, não parecem muito dispostos sequer a fingir que trabalham. Recebe um cutucão de Roni.
- Quié, saco!?
- Cê não tá me ouvindo, né? Poxa! Esta carta, “enviada sob as bênçãos de Santa Edwiges”, vai multiplicar minha sorte se eu mandar vinte cópias para pessoas que também precisam melhorar de vida.
- Onde você arranjou isso?
- Jogaram debaixo da porta de casa. Quem disse que a sorte não bate na porta da gente? Só que eu tô na dúvida... Cê acha que isso aqui é sério? Eu quero tanto ganhar dinheiro...
- Então você podia trabalhar mais, ué!
- Mais? Eu trabalho pra carai e não entra um centavo!
- Isso é bobeira, Roni. Ninguém ganha na loteria porque mandou uma carta. Se fosse assim, todo mundo tava rico.
- Eu sei... mas tô com medo de minha vida mergulhar num inferno astral se eu quebrar a tal corrente. Já pensou se eu morro atropelado amanhã?
A careta de Téo demonstra impaciência. Retornando a atenção aos pedreiros, calcula há quanto tempo começou a obra e o que já foi realizado. Não bate... as paredes já deviam estar de pé.
- Vamos descer, quero conversar com os caras.
- Vou ficar, prefiro me concentrar nesta carta...
- Vem comigo, caramba! Dá mais respeito pra esses folgados.
- E o Gil? - Aponta para o pobre rapaz no banco de trás, cabeça encostada no vidro, olhar perdido, alma destroçada pelo fim do namoro com Sol.
- Ele fica, ué. Não vai ajudar em nada e não acho que vá fazer alguma bobagem, sozinho dentro do carro. Por via das dúvidas, levo as chaves.
Os quatro pedreiros interrompem a conversa ao perceberem que Téo e Roni descem do carro e se encaminham em suas direções. “Bom dia, patrão! Esquentou o tempo, né? Pois então, agora a casa vai! É que tem feito tempo ruim... Chove, a obra para. Quanto tá muito frio, alguém fica doente e o serviço atrasa”.
- Você não acha que tá devagar demais, Zé Pedro?
- São as intempéries, patrão...
Onde porra aquele peão aprendeu a falar assim?
Téo fica olhando os pedreiros, os rostos entre a insolência e a galhofa. Pensa em algo pra dizer... mas e se exagerar? E se os caras se rebelarem? Então, de repente, os quatro se separam: um pega o saco de cimento, o outro vai em direção às tábuas, o terceiro agarra uma enxada e Zé Pedro, surpreso, caminha sem rumo pelo terreno. Intrigado com a súbita alteração nos comportamentos, Téo ouve Roni comentar que “Laura tá chegando”. Olha pra trás e vê a esposa, que viera com o carro da irmã, descer em direção à obra.
- Putaqueopariu, Zé Pedro! Ainda tá no chão a casa?
- Dona Laura, é o seguinte, as chuvas...
- Choveu onde, Zé Pedro? Cê tá achando que eu moro em São Paulo? Ou será que, em toda Ardósia, tem chovido só neste quarteirão?
- Ha, ha, a senhora é engraçada. Não é isso...
- Um mês e o alicerce ainda não tá terminado, Zé Pedro! Tá achando que meu marido tem cara de tonto?
O pedreiro olha para o tal esposo, imagina uma resposta; percebe a ira da mulher, segue pelo sentido contrário:
- Claro que não, dona Laura! Fica tranquila, os pobrema tá resolvido e em uma semana a gente levanta as paredes.
- Três dias!
- Tudo bem, dona Laura. Um abraço, patrão!
Téo, Laura e Roni retornam aos carros. No caminho, ela percebe Gil jogado no banco de trás; lamenta pelo estado deplorável do amigo, comentando que ele tem motivos para estar tão mal, “já outras pessoas, são bunda-mole por natureza”. O marido, de cara fechada, não responde. É Roni quem toma a palavra.
- Laurinha! Olha só a carta que eu recebi! Uma corrente que existe há quinze anos, começou na Inglaterra, “sob as bênçãos de Santa Edwiges”, e quem continua com ela fica rico!
Ela lê a carta.
- Não acredito que ainda tem pessoas que acreditam nessas bobagens...
- Ah, é? Pois tem gente que pensou como você e perdeu mulher, filhos, emprego, saúde, tudo!
- Isso não vale nada... Deixa de ser tonto, Roni.
- Mas... e seu perder tudo?
- Tudo o que? Você não tem nada... deixa de ser idiota. Tá parecendo o Téo.
Cada um entra no veículo em que chegou; Laura vai embora. Téo e Roni, bravos por diferentes motivos, sentam-se sem falar nada. O primeiro dá a partida, engata e coloca o carro em movimento. Roni joga a carta pela janela. “Nem mulher pra perder eu tenho”, lamenta. Atrás, Gil fecha os olhos.