ARDóSIA 37 : Feliz ano novo
Impaciente, Roni remexe as coisas no quarto de Gil. Abre revistas jogadas sobre a escrivaninha, derruba camisetas recostadas sobre a cadeira, mexe na caixa onde normalmente guardada a velha faca ninja. “Tá caidão mesmo, nem a ninjinha ele cuida mais”. Procura ainda por um CD seu que não vê há tempos... Até tomar uma bronca de Laura, num dos cantos do dormitório com o maridão Téo, os três aguardando Gil terminar seu banho, com o amargo objetivo de consolá-lo. Difícil suportar o que aconteceu com Sol.
- Olha, eu nunca gostei dessa garota – decreta Roni.
- Cê acha que é hora de falar disso? Ele pode escutar, vamos fazer com que pense em outros assuntos – pondera Téo.
- Como se fosse possível! – sentencia a esposa.
Sol esteve a um passo do aborto espontâneo, uma semana antes, durante a festa natalina. Após quase uma semana de repouso, recuperou-se, embora ainda inspire cuidados. Hoje, véspera da chegada de um novo ano, ela volta para casa. Os médicos sugeriram que esperasse mais alguns dias, só que, cabeça dura, quer festejar o réveillon em sua cidade natal. E com o namorado. Que não é Gil. Não mais.
Téo, amigo de longa data, assustou-se com o comportamento de Gil após o rompimento. “Nunca vi o nego daquele jeito, foi sempre tão pacato, tranqüilo... Falou que vai matar a Sol, sabia?”. Roni, porém, está cansado de esperá-lo terminar o banho para a festança daquela noite:
- Vai nada! Sempre foi bundão, pensa que vai enmachezar agora? Outro dia tava cheio de formigas na cozinha e, antes de matá-las, ele justificou que era “por um bem maior”. Eu nem entendi o que ele quis dizer! Peguei o jornal e fui macetanto aquela fila de nojentas! Ele ainda me olhou meio torto... Pode uma coisa dessas?
- Sei não... Ele ama essa garota... E terminar assim... Inda mais nesta época!
- Pelamordedeus! Eles se conhecem há quanto tempo? Cara a cara, não faz nem dois meses! Antes, só pela internet! De repente, a garota virou a paixão da vida dele? – Laura não se conforma com a frivolidade masculina. Merecem mesmo sofrer! Todos!
- Ninguém controla o coração, querida...
Ao perceber que o marido diz aquilo com lágrimas nos olhos, Laura tem vontade de socá-lo e vê-lo novamente apenas para assinar os papéis do divórcio. Mas... calma... calma...
- Bão. Eu não quero é que ele estrague a festa de ano novo. Vou me dar bem! A Kiara tá sozinha, que eu tô sabendo. Hoje caprichei no banho – sacumé, data especial... Enquanto Laura e Téo estão todos de branco, ela de vestidinho curto e ele de bermuda e camisa de botões, Roni preparou-se com uma bermuda azul-bebê e uma regata amarela. Além de tomar banho, exigir que saia bem arrumado é muita coisa para uma noite só!
– Caraca! Vou chamar aquele demente! Ó Gil, vambora!!
Enquanto vai até o banheiro, Laura e Téo conversam no quarto.
- Ela tá indo embora hoje, né?
- O pai do bebê veio buscá-la. Os familiares avisaram o cara sobre o acidente e, sei lá, teve uma crise de consciência. Veio de ônibus lá de Jaborandi pra levá-la de volta. Agora devem estar como dois pombinhos, enquanto o coitado do Gil tá na fossa.
- Aliás, o ônibus deve tá saindo por agora, no horário especial que criaram para o fim de ano. Além de tudo, é teimosa! A hemorragia que teve... fazer uma viagem dessas de ônibus...
- Gente! O Gil sumiu! Não tá no banheiro, não tá na casa... Olhei tudo!
Os três ficam perplexos, olhando um ao outro, procurando uma resposta no semblante do companheiro. Roni observa a caixa da faca ninja, vazia sobre a escrivaninha. “Putaqueopariu”. Sai correndo; uns dez quarteirões até a rodoviária; aquela corrida não estava nos planos. O perfume vai pras cucuia. “Eu mato aquele negão! Hoje eu tomei banho caprichado!”. Dá-se conta, então, que Gil é quem realmente pretendia matar alguém; acelera o trote. Não é fácil, o fôlego falta. Pelas ruas, famílias passeiam no calor deste 31 de dezembro. O clima é amistoso, contrastando com o rosto do maratonista de meia tigela. Visualiza a rodoviária, onde um ônibus está estacionado. Pausa para recuperar o fôlego, apoiando as mãos nos joelhos. Não parece haver nada grave; no máximo, Gil vai tomar uns murros do outro cara. Então vem o grito. Roni observa um tumulto em torno do coletivo; a parca iluminação não permite definir detalhes. Não impede, claro, ouvir os gritos que sucedem ao primeiro. Fôlego não há, mas ele chega à rodoviária em dois pulos.
Ao chegar, ouve a ranzinza faxineira da Rodoviária reclamar: “Ô povo exagerado. A menina já tá melhor”. De fato, as pessoas ajudavam uma garota que, pelo visto, recuperava-se de um desmaio. Apesar do horário, mais de dez da noite, o calor é intenso e nem toda pressão se mantém. Os gritos eram da – exagerada, concordemos – avó da jovem. Roni fica aliviado, enquanto recupera o fôlego. Procura, mas não vê qualquer sinal de Gil. O motorista anuncia que precisa partir; as pessoas se acomodam – passageiros dentro do ônibus; parentes, fora – e ouve-se o ruído do motor. Enquanto o veículo sai da modesta plataforma, Roni percebe Sol numa das janelas, ao lado de um rapaz. “Putz, bonitão! O Gil se danou mesmo...”. Ela também o vê, mas não esboça reação. “Nunca gostei dela”. O ônibus vai.
Pondera que “Gil deve ter ficado em casa mesmo”, acreditando tê-lo perdido em algum cômodo. Caminha de volta, lentamente, recuperando o fôlego e reclamando do papel bobo que fizera. “Aposto que o cara não tá nem aí com o preço da soja, se a Sol vai ou fica... e eu, agora, todo fedido”. Caminhando com calma, quase sem fôlego, percebe uma pessoa sentada na beira da calçada de uma das ruas que cruzou. É Gil, cabeça apoiada sobre os braços cruzados. Roni respira fundo; não tem mais 20 anos. Aproxima-se e senta-se ao lado do amigo. Ouve-o chorar.
- É você, Roni?
- Fica, calmo, cara. Sou eu, sim, como sabia?
- Você tá fedido...
- Corri pra te buscar! E você aí, seu merda!
- A Sol foi embora. Pra sempre - Gil levanta o rosto, olhos suplicando ajuda. Roni o abraça, repousando a cabeça do amigo sobre seu ombro. “A vida é uma droga, mesmo, Gil. Fica assim não. Hoje você tá chorando, amanhã é ela” ... “Não quero o mal dela”, corta choroso ... “Também não quero. Só to tentando dizer que amanhã você tá melhor. A vida é cheia de momentos bons e ruins... Você deu azar de algo muito ruim cair numa data especial. Mas tem a gente, teus amigos, pra te ajudar a segurar o bagulho. Fica firme, véio. Vai passar... Tem agora um novo ano começando... E vai ser melhor, eu garanto”.
O choro fica mais forte, grito abafado na blusa de Roni. Gil deixa cair a faca ninja no asfalto.