E O TEMPO PASSOU E DEIXOU MARCAS PROFUNDAS.
E O TEMPO PASSOU E DEIXOU MARCAS PROFUNDAS.
Quem por ali passava sempre se lembrava daquela casinha de chão batido, erguida com tijolos de adobe e coberta de palhas de palmeiras. Casa baixa, com duas janelas de frente e entre elas uma porta, que nunca, mas nunca mesmo, experimentou a chave para trancar e proteger a casa. A chave, aquela grandona de ferro batido, ficava pendurada bem debaixo do quadro de Nossa Senhora Aparecida, enfeitado que era por duas rosas de papel crepom.
Na cozinha, o fogão à lenha sempre com uma chaleira cheia de água chiando, e na hora do almoço o contraste se apresentava como uma obra de arte. As panelas de alumínio luzidias, como se fossem revestidas de uma película espelhada, que por sua vez refletia o pretume do caldeirão de ferro, onde o feijão mulatinho pulava como se estivesse batendo com a bunda no fundo quente do caldeirão. Por cima, atravessado um arame farpado, todo decorado com mantas de toucinho, courinho de porco e rodelas de lingüiça grossa. Não defumavam a fina porque secava muito.
Na prateleira, não faltava nunca o colorau e o açafrão, as sementinhas de coentro, sal que era fornecido para o gado, que era o mesmo usado na cozinha; só que antes fazia-se uma salmoura e deixava no sereno por uma semana. Antes de ser usado na comida, era apiloado até ficar fino que bastasse para se desmanchar na comida.
A frigideira preta, bem grandona e alta, era a responsável pelo som chiado e explosivo, e quando cheia de banha de porco, ficava quente e recebia aquela coleção amarelada e branca de ovos das galinhas do terreiro. O perfume, superior a qualquer outro, inundava a casa; eram distintos o perfume do feijão com folhas de louro e pedaços de porco e a lingüiça frita com rodelas de cebola e alho; o arroz colorido com açafrão dava um toque aromático de dar água na boca. E os ovos estralados, então?
Na mesa tosca, de tábuas grossas de angico e bancos corridos de jacarandá, os pratos de alumínio. Os de esmalte só nos dias de festa e para as visitas importantes, como o padre. E tudo isto demonstrava claramente que a simplicidade estava sempre ao lado de todos, ou seja, à medida que as pessoas se dirigiam ao fogão e se serviam fartamente do que fumegava das panelas. E então o espetáculo se completava com a oração ao Pai Eterno, agradecendo pelo Pão Nosso de cada dia e pela fartura que sempre perduraria.
De início comia-se em silêncio e só depois da metade da comida pra frente é que se começava a falar. Era uma tradição. Primeiro se comia para tapar a boca do estômago, para que ele não ficasse futricando prás tripas qual era o tipo de comida, pois as tripas eram muito invejosas e podiam não receber muito bem a comida e dar desarranjo na pessoa. Depois então a conversa corria solta, era um tal de assuntar sobre os problemas do tempo, das galinhas de capote que estavam chocando, dos lagartos que estavam rondando os ninhos, da limpeza da fonte d'água, onde moravam as pererecas e também da necessidade de plantar palma de Santa Rita, para que no dia de Finados, pudessem enfeitar os túmulos dos antepassados.
A casa modesta, os cômodos, se falassem, podiam contar histórias e histórias por muitos anos. Não que a casa fosse muito velha, quatro vezes já tinha sido "reformada". Uma vez resolveram colocar assoalho de madeira em toda a casa, mas como não tinham experiência, colocaram o assoalho uns 20 centímetros acima do chão de terra, e passados alguns meses, o que era para ser um conforto, tornou-se um tremendo problema, pois não foi que duas cascavéis resolveram ali se alojar? E como tirar as baitas dali? Se organizaram de tal forma que cada um cuidava de um lado da casa, e dois iam arrancando as tábuas. À medida que arrancavam as tábuas, as cobras (depois é que descobriram que eram duas) iam se afastando e não foi preciso arrancar muitas tábuas para que uma saísse pelos fundos e outra pelo lado da janela da sala. Mataram as duas e depois então arrancaram todo o assoalho. Chão batido e pés no chão eram mais seguros.
Aos domingos, a vizinhança se reunia para colocar o papo em dia, era o compadre que trazia um capado assado, ora um parente que vinha de pouso e, sabendo da modéstia dos donos, já trazia a sua rede. Outra vez eram os filhos e filhas que já casados, vinham com os netos e netas quebrar aquela rotina franciscana, com suas correrias e pedidos dos mais simples como um pedaço de queijo de coalho frito na chapa ou um pedaço de rapadura, até os mais complicados como perguntar para avó como era que as crianças nasciam. Imagine a confusão. De outra vez era neta mais nova que cismava de dormir com a avó e o avô, e isto provocava uma ciumeira tão grande que por fim a cama dos avós se tornava um amontoado de netas e netos.
Os banhos da criançada então era uma festa diferente. Chuveiro? Tinha sim, mas era aquele do tipo "tiradentes", e nunca havia água suficiente para cada banho. A solução então era tomar banho no rio. Era um rio de pouca profundidade e água mansa. Tinha umas pedras grandes, onde muitas vezes as tartarugas de rio ficavam ali tomando sol, e quando notavam qualquer presença de gente, fugiam rápidas para a água. Os banhos no final da tarde, sempre vigiados pelos pais ou por algum parente, eram uma festa de inocência pura, colorida pelo vôo inquieto das borboletas amarelas e verde claras. Terminado o banho, todos com o cabelo penteado, mas parecendo lambida de vaca, ajoelhavam-se para rezar o terço e só depois iam jantar. Terminada a janta, reuniam-se em frente à casa, sentados em bancos individuais ou de mais lugar e ali ficavam a contar casos e histórias, quando não ouvindo um violão e uma gaita, que acompanhado pelas músicas tradicionais e verdadeiras daquela gente, fazia a alegria de todos. Não gostavam de sentar-se debaixo dos pés de manga, pois ali dormiam muitos passarinhos e de vez em quando, alguém era premiado com a cagada de algum, como uma forma de protesto por estarem atrapalhando o sono.
Mas aquela casa e seus cômodos traziam lembranças, histórias verdadeiras, causos, e até algumas histórias de amor não correspondido.
Contam que quando a casa foi construída, foi parar ali morar um casal jovem, que iria se casar, mais por interesse dos pais do que por amor entre os jovens. Ele um moço feito, já com seus 22 anos, fortão e de cabelos negros, olhos negros, dentes brancos como farinha de trigo de primeira. Ela moça nova, com seus 18 anos, bonita, de cintura fina como de pilão, cabelos loiros lisos até um ponto e depois meio ondulados, que batiam nos ombros, olhos verdes, lábios lindos e emoldurando uma boca mais linda ainda. Os pais, tanto da moça como do moço, eram primos e para piorar a coisa mais ainda, eram casados com primas. Moravam alguns dias de distância, os pais do moço tinham uma gadaria lá pro lado da Serra Preta e os da moça, moravam na barra do rio Assustado. De comum acordo, resolveram unir as famílias para fortalecer mais ainda a união e a preservação do nome de família. Coisas de gente meio confusa das idéias. Mas o moço foi o primeiro a não concordar com o tal casamento e foi logo falando para a sua prima em terceiro grau, e ela por sua vez não se fez de surpresa e também não concordou com o tal casamento.
Mas a casa já estava quase pronta. Faltava só a festa da cumeeira, e então já podia se marcar a data do casório. Data marcada, enxoval pronto, móveis simples, mas o suficiente, colchão macio e fofo feito com palha de milho desfiada, dois pinicos esmaltados, o dele azul e o dela verde clarinho com flores vermelhas. O baú com as roupas da moça já estava praticamente cheio, faltava só a camisola branca, bordada com ponto inglês. Padrinhos escolhidos e, lógico, o casamento se realizaria quando da visita do padre Balalai, mais conhecido por padre "Balaio", que passava para recolher o dízimo e algumas prendas para a matriz. Faltando não menos que uma semana para o casamento, os dois jovens colocaram em prática o seu plano. Fugiram. Foi uma desgraça imensa. O rapaz que saíra para campear umas vacas com cria, costumava ficar mais que um ou dois dias, razão pela qual os pais não estranhavam a sua ausência. A moça, por sua vez, com a desculpa de visitar uma amiga, distante meio dia de cavalo, também não despertara alguma desconfiança. Passaram-se 3 dias. Já era Quinta-feira e nada do moço e nada da moça. Na casa da amiga, nem sequer sabiam da prima noivinha. Da mesma forma não se tinha noticia do moço, que saíra para campear as vacas de cria.
Desgraça? Morte? Nunca mais se ouviu falar do casal de primos em terceiro grau. Uns diziam que ele fora prá muito longe e se tornara volante da Policia Militar. E ela diziam que fora para um convento que o padre Balaio lhe indicara, depois de tê-la ouvido em segredo de confissão, por horas e horas. A casa? Pois é, a casa ali ficou por muitos anos fechada. Construída que fora na propriedade do noivo. A tristeza agora já não era maior porque o filho mais moço, irmão do noivo fujão, se casara com uma moreninha, pedaço de tentação e pecado em forma de mulher. Eles foram os primeiros a morar na casa. Com a morte dos pais, se mudaram e foram morar na casa grande. De novo a casa ficara vazia, mas por pouco, e ali veio morar um novo casal. Ela, prima de sangue, e ele, primo de devoção, como costumavam dizer. Já se passavam uns 28 anos do acontecido, do desaparecimento do casal de primos, que foram prometidos em casamento.
O sol, quando batia forte nas palmeiras, costumava estralar e não ficava nada em cima do telhado, mas em compensação, no interior da casa era uma frescura que só. Nas noites de inverno, o frio era sadio e gostoso, e nas noites de calor, era uma gostosura só.
E os tempos foram passando. A casa ali, com suas recordações. Com seus cômodos discretos, que poderiam contar histórias mil. Como aquela quando um primo se enfiou dentro de um balaio de roupas só para ver a prima se trocar. E a prima se despiu toda. Ficou nua como quando tinha nascido, e ele ali de butuca. Mas a excitação era tão grande, que acabou rolando com balaio cômodo afora. Foi uma gritaria só. Correram todos e a coitada da moça, agora enrolada em uma colcha, apontava para o balaio. E o tal curioso ali, também todo enrolado com as roupas. Castigo? Andar uma semana com uma calcinha de mulher na cabeça.
Era noitinha, já estavam para jantar, ouviu-se o latir dos cachorros como que avisando que por ali havia chegado alguma pessoa. Foram espreitar quem seria. Uma mulher, alta, já na casa dos 45 anos quase 50, pedia para pousar por ali, pois estava de passagem e a noite não lhe era companheira e nem conveniente para viajar.
Entrou. Cumprimentou a todos. Conversa vai, conversa vem. A senhora conhece estas bandas? O silêncio foi prolongado. Um suspiro e um olhar distante, perdido no tempo. Sim, conheço muito e estou de passagem por aqui. Vou ao cemitério para visitar o túmulo dos meus pais. Mas a senhora já viveu por aqui? De novo o silêncio. E a resposta espontânea. Sim, já vivi por aqui. Há quanto tempo? Há muito tempo. Do que a senhora se lembra? Me lembro que o tempo passou e deixou marcas profundas.
Aquela noite ela dormiu na casa que nunca fora sua. No outro dia, partiu ainda com as marcas mais profundas, pois nunca conseguira amar ninguém na vida, de medo de ser infeliz, como quase o fora e ainda continuava a ser. A casa ficou e as marcas profundas no coração também ficaram.
ROMÃO MIRANDA VIDAL.