ARDóSIA 36 : Festa iluminada

Quem olha a rua desde a esquina encontra uma bela imagem. Dezenas de luzes vermelhas espalhadas pelas calçadas que a margeiam, enfeitando as residências e os poucos comércios, como a Papelaria da Josefa e o Açougue do Chico Parra. Tradição no bairro, todo Natal as famílias fecham passagem para os veículos, distribuindo mesas, guirlandas, Papais Noéis e, hummmmmm, guloseimas! A algazarra é ensurdecedora, começando no final da tarde e entrando pela madrugada. Os quitutes mais gostosos ficam por conta de Evandra, dona do boteco, enquanto o maridão Jesuíno, aproveitando a barriga proeminente, faz a vez do Bom Velhinho.

Este ano há uma nova personagem na festa: Sol - e sua enorme barriga de oito meses - veio a convite do namorado Gil; de relações estremecidas com a família, chegou animada até Ardósia para os festejos natalinos. “Olha a Mamãe Noel! Tem barriga e tá de vermelho!”, grita a espevitada Idônea. Alguns sorriem, Gil olha feio, Roni gargalha, mas há controvérsia quanto ao fato de Sol ter ouvido ou não. Há quem diga que contraiu as sobrancelhas; sem registros, porém.

- Não liga pra essa pivetada, meu amor.

- Nem ouvi o que disseram... Mas eu gosto. Adoro crianças!

- É porque você não conhece a Idônea e o Ilícito – comenta Téo – A gente tá querendo filhos, mas se saírem como esses dois, Deus me livre!

- Não fala assim, é até pecado! – ralha Laura ao marido.

- Concordo, amiga. São apenas crianças – completa Tânia, num elegante, porém discreto, vestido negro, abaixo dos joelhos. Desde o retorno à cidade, aparece somente em tons de cinza ou preto. Luto pelo marido? Ou apenas mudança repentina de gosto?

- A patota tá reunida.... a Mamãe Noel com a nova crente. Tá achando que é só ficar de preto e todo mundo esquece as safadezas...

- Idônea! Sua moleca! – Laura perde a cabeça, mas tem o braço seguro pela mão da amiga.

- Deixa, Lau. É pior. E, se você quer saber, pelo menos ela é honesta, fala pela frente. Pensa que não sei que todo esse povinho hipócrita não pensa isso de mim?

- Eles não sabem de nada.

Fugindo do clima que começa a pesar, Sol afasta-se do grupo. Pouco depois, percebendo a distância, Gil a observa isolada num canto, acariciando a barriga. (Barriga? Barrigão!) Parece triste. “Deixa ela lá, quer um tempo pra pensar sozinha”, sugere Roni. “Homem é mesmo um bando de mula! Ela tá triste, sabe Deus o motivo! Vai e ajuda no que puder. Você é ou não o homem dela?”, ralha Laura, jogando o espírito natalino, de uma vez, para o espaço. Sem saber o que fazer, ou o que dizer, ele vai – meio desengonçado – ao encontro da moça. Sim, ela parece muito triste. Antes mesmo que o namorado pergunte ou lhe ofereça algumas castanhas, diz:

- Não é justo... Você não precisa fazer isso.

- Quiéisso... São só algumas castanhas...

- Meu filho. Não tem sentido você assumir. A gente se conhece há pouco tempo, nem temos certeza se vai dar certo. Tô te empurrando uma responsabilidade que nem sei se você aguenta.

- Sol! Olha pra mim... É claro que a gente pode quebrar a cara, mas casamentos de dez anos também terminam. Não é o tempo que conta! Não fui eu quem fez esse filho, mas quero ser o cara que estará ao teu lado quando o bebê chegar. Serei quem vai ensiná-lo a andar e a torcer pelo Timão.

- Você mal pode cuidar de si mesmo...

- Tá errada! E vou te provar. Cuido de você, do bebê, de nós dois... Quero dizer, de nós três. Não vou deixar nada faltar... Eu te amo.

- Não tá falando isso só porque é Natal?

Gil sorri... e a beija. Não é bem uma daquelas carícias apropriadas ao Natal... O beijo é um tanto ousado para a ocasião, analisam os observadores. “Despudorados!”, critica tia Ane Dota. Então prosseguem de maneira mais doce, agora sim condizente com os festejos de fim de ano. Fitam-se de maneira terna. Os olhos da mulher brilham. Gil a abraça e Sol aperta-o com força, quase machucando. “Calma, Sol... Vai dar tudo certo”. Os olhos femininos lacrimejam.

A pedido de Sol, Gil busca mais castanhas. No caminho, encontra com o Papai Noel mais fajuto que já vira. “Poxa, mas nem a barba você consegue colocar direito, Jesu?”. O simpático comerciante sorri.

- Como vai, Bom Velhinho? – chega também Vera, a dentista. Jesuíno fica com o rosto no mesmo rubro tom da roupa. Gagueja.

- Percebeu que era eu?

- Impossível não te notar nesta multidão...

- A senhora... Olha lá, hein? É Natal... – Jesu sorri, sem jeito, ainda perplexo com a recente vista ao consultório odontológico.

Gil sente um clima estranho. Mas não... Não pode ser. Impossível, entretanto, não perceber a dentista mordiscando o lábio superior. Parece tentar resistir a algo... Mas esse “algo” é Jesuíno... Não. Definitivamente, não pode ser.

O Noel de quinta categoria enfia as mãos nos bolsos, diz que “qualquer dia preciso ver uns dentes de novo”, percebe a bobagem dita e completa que deve buscar os presentes da criançada. Ele sai; Vera fixa os olhos no bumbum do homem que se afasta; “tá quase comendo o cara com os olhos”, analisa Gil, perplexo com a cena. “É Natal... Eu deveria imaginar solidariedade, não ‘lascividade’”.

- Agora é Papai Noel de verdade!!! – grita o pequeno e animado Ilícito.

- Ho, ho, ho! Tem presente pra todo mundo, criançada! Vamos com calma!

O rebuliço em torno daquela figura vermelha é intenso. Até os adultos se aproximam, nem todos animados... “O buço da Creusa tem mais pêlos que essa barba falsa... Onde ele conseguiu isso?”, alfineta tia Ane, um tanto ranzinza nesta data. No geral, porém, o clima é de descontração. Só se ouve a gritaria da molecada, os risos dos adultos, as... Aaaaaaaaaaaaaahhhhhhhh!

O grito agudo corta o ar. Alguns nem percebem, confundindo-o com a ruidosa balbúrdia. Laura vira o rosto desconfiada e percebe Sol encurvada, rosto abaixado. Cutuca Gil, que corre em direção à namorada.

- Que foi?

- Dói!! Dói muito!

Sentindo algo escorrendo pelas pernas, Sol levanta a saia até a metade da coxa. É sangue. Embora apenas sussurre “Meu Deus”, seus olhos procuram Gil em desespero. Perplexo, o rosto assustado alterna entre a cara e as pernas da namorada. Téo é quem liga para a ambulância. Sol se ajoelha, novos gritos, entre assustados e doloridos; Laura e Gil a ajudam a encontrar uma posição confortável.

- Meu bebê, pelamordedeus! Meu bebê!

- Calma, respira fundo...

- Tá doendo, caralho!

- A ambulância tá chegando...

- Cacete...

- Tenta se acalmar, não é nada.

Agora os olhos de Sol têm um misto de raiva e incredulidade. Como ele dizer isso?

- Vem, eu te levo de carro! Vocês me ajudam com ela? – oferece-se Vera, a dentista. Com o Corsa estacionado na esquina, não foi preciso carregar a gestante por muitos metros. Deitada no banco de trás, Sol geme dolorida, cabeça no colo de Gil. Laura também entra no carro, enquanto Téo, Roni e os demais, entre assustados e curiosos, observam a ajuda. Vera parte em alta velocidade.

Agora, quem visse a rua a partir da outra esquina, perceberia ainda mais luzes vermelhas, completadas pelos faróis do carro que segue veloz para salvar uma, talvez duas vidas.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 24/09/2012
Código do texto: T3899569
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