ARDóSIA 35 : Quase erótico

Ser trocada por outra de 25 ou 30 (“sei lá quantos anos tem a piranha”) já não é mais tão duro de suportar, do alto da maturidade de seus 53 anos. Recordar-se de todos os momentos de incompreensão e infelicidade solitária fizeram-na perceber como realmente fora triste aquela união. Ao ser trocada por outra de 20 (“é bem nova, a vaca”), a estocada não fora no amor... O orgulho foi quem se ferira. Melhor assim. Só. Liberdade para namorar o homem que bem escolhesse. Oquei, não mais se recordava dos truques de paqueras (“Deus, há quanto tempo não estou sozinha?”) e em Ardósia as opções não são das mais variadas. Não importa. Há anos (“há séculos, eu acho!”) não tem a sensação de estar livre.

Nem tudo são flores... há algo que sente falta. E muita. Sexo. O ex pode até ser um canalha (“Pode ‘até’ ser um canalha? É um belo fêladaputa!”), mas comia como ninguém. Isso Vera percebeu na primeira vez em seu consultório, quando ele tratou duas cáries. Agüentou firme as obturações, com o rosto sereno mesmo ao som da pequena broca, momento em que ela já vira homens enormes e barbados fecharem os olhos, assustados, segurando com força os braços da cadeira reclinável (“um bando de cagão em pele de garanhão”). Mesmo nas horas mais difíceis do casamento, as noites de sexo eram memoráveis, e lhe renderam dois preciosos filhos: Cateto e Hipotenusa.

Com o tempo, percebeu ter atração, ainda que velada, por homens que, mesmo franzinos, não demonstravam qualquer receio aos aparelhos odontológicos em suas bocas. No sentido contrário, tinha verdadeira aversão àqueles que, fossem belos e musculosos, tremessem ao ouvir o zumbido da broca.

Talvez por isso, quem sabe, tenha sentido um formigamento estranho ao ver Jesuíno sentado na sala de espera...

- O senhor por aqui? Que bom!

- Pode me chamar de você. É que o dente tá amolando demais.

- Vou cuidar do Laurinho e depois a gente vê isso, tudo bem?

- Claro, claro! Tô aqui lendo as revistas.

Vera trata dos dentes do pequeno Lauro com incomum rapidez e displicência. Não que o garoto de 14 anos tenha reclamado, ao contrário. Só estranhou. A dentista fica pensando no paciente seguinte. Seu visual rústico, de homem simples mas decidido, despertara-lhe interesse. Não se casaria com ele, mas... Mas o fato é que ele é casado e, ao que soube, extramente fiel, “seguidor das tradições da família”. Uma pessoa rara de se encontrar. Um homem excitante...

Aguentaria bem uma obturação?

- Tá frio hoje, né, Laurinho?

O garoto estranha a pergunta, pois já está de saída. Com a deixa, Vera liga o ar condicionado no quente. Retira o jaleco e abre um botão da blusa. Tudo muito espontâneo, não se pode acusá-la de premeditação.

- Como vai, dona Vera? Puxa, tá calor aqui dentro!

- Pode deixar o agasalho sobre aquela cadeira. Deite-se, ou melhor, você entendeu... Sente-se aqui. E me chame apenas de Vera! Nada de dona!

Jesu sorri. Repousa o agasalho numa banqueta ao lado e senta/deita numa daquelas famosas cadeiras de dentistas.

- Não precisa ter medo, viu? Eu aplico bastante anestesia!

- Quiéisso... – o simpático homem sorri. – Não sou criança. Nunca tive medo de dentista. Pode vir com esses aparelhos estranhos que eu enfrento!

Quanto ele aguentaria? Sem dar-se conta, Vera mordisca os lábios.

Impossível Jesu deixar de perceber o decote da dentista, mais ousado que nas raras ocasiões que a encontrara. Pegou-o de surpresa. Não achou ruim. Abre bem a boca, atendendo à ordem de Vera, agora um tanto mais ríspida. Tampouco esperava por isso. É estranho, mas também não achou ruim... A dentista vasculhou entre dentes, língua e gengivas. O hálito não era, é preciso admitir, de alguém que acabara de escovar-se; embora tampouco fosse o “bafo” de quem comera algo estragado. “É alento de homem”. Vera começa a perder o controle.

Com um daqueles aparelhos pontiagudos, espeta o dente dolorido de Jesuíno. Impassível, ele apenas diz: “É esse aí”. Olhos nos olhos. Dois segundos. Ela espeta de novo. “Tem certeza?”. Ele apenas acena com a cabeça. Jesu percebe que a dentista, ao levantar-se, solta o cabelo enquanto vai preparar algum produto. Passados dez segundos, Vera interrompe o trabalho; nos olhos, um brilho maquiavélico. Vira-se e diz ao paciente, em tom que deveria ser de lamentação, mas estava mais para sussurro...

- Nossa. Não sei como te dizer, Jesuíno.

- Ue foi? – o som saiu confuso por causa dos algodões na boca.

- A anestesia terminou. Não sei como pude deixar isso acontecer...

- Hã...

- Não quer tentar assim mesmo?

- Sem aesesia? Ão ai oer? (“Sem anestasia? Não vai doer?”, na língua algodoada).

- Vai. Mas será rápido... – Ela se inclina sobre a cadeira, ressaltando o decote tentador. Apesar de ultrapassar a barreira dos 50, tem o corpo bem delineado – Se doer muito, você avisa e eu paro.

Jesu reflete. Ou tenta. Aceita. “É rápido e, afinal, não sou mesmo mais criança!”, pensa. O subconsciente emenda: “Nnão vai dar uma de maricas na frente de uma mulher dessas, né?”.

Olhos nos olhos. A broca gira, o ruído característico consome cada centímetro da sala. Vera sorri, maliciosa. Jesu devolve o sorriso, um tanto temeroso. Abre a boca. Aquilo é maldade, Vera sabe disso. Já teve prazer em ver homens suportando o medo e a dor em seu consultório, mas aquilo... Está excitada. Jamais fizera uma obturação sem anestesia.

A princípio, Jesu aguenta firme. A dor incomoda, mas é plenamente suportável. Sentada na banqueta ao lado, Vera esfrega uma coxa na outra. O homem é forte, como previra. Aperta mais contra o dente. Jesu prende, com força, as mãos contra os “braços” da cadeira. Ameaça dizer algo... Ela morde o lábio inferior. A cárie está quase toda removida... o obturador soa mais alto... há um buraco no dente... Lágrimas ameaçam escorrer dos olhos de Jesuíno... Vera sua... Então ele pede pra parar. Um grito contido ecoa do boqueirão aberto.

Enquanto cospe a mistura de líquidos de sua boca, explica: “Desculpa, dona. Não dá. Tá doendo muito”.

Apoiando uma das mãos sobre a perna do dolorido homem, ela anuncia: “Tudo bem, Jesu... Acabei o serviço”.

Olhos no olhos. O homem, meio atônito, levanta-se, veste a jaqueta e avisa que acertará a conta com a recepcionista. Vera, em meio a um suspiro, responde que “tudo bem” e fecha a porta após sua saída... Está cansada. Satisfeita, mas cansada. Percebe-se molhada.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 24/09/2012
Código do texto: T3899565
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