Os dois bêbados no cemitério

Zé da Barbina era como todos chamavam José Francisco Ferreira Filho, que fora batizado com o nome do pai mas era pelo nome da mãe, Dona Barbina, que todos o chamavam. Seu pai carregou o apelido comum dos Franciscos, era conhecido como Chico do Laço, por causa do oficio que exerceu a vida toda. Era famoso pela sua arte de trançar couro e transformá-lo em laços. Apesar de ter verdadeira veneração pelo pai , a arte da trança do velho Chico do Laço não foi herdada pelo filho. Zé da Barbina se tornou um excelente marceneiro, caprichoso e dedicado que só tinha um defeito: o vício. Para Zé, qualquer coisa era motivo para beber o primeiro gole do dia. Se estivesse feliz, bebia para comemorar, se estivesse triste, bebia para esquecer. Jogava quase todos os dias, fumava um cigarro atrás do outro e muitas vezes perdeu o caminho de casa de tanto afogar as mágoas no copo de cachaça. Dona Barbina, já avançada em anos, tentava de toda forma tirar o filho daquela vida. Já tinha tentado de quase tudo. De padre a pastor evangélico, de simpatia a remédio de farmácia, mas nada parecia funcionar. Já cansada, dizia que só um milagre faria seu filho largar a mesa de jogo, a cachaça e aquele cigarro.

Foi em um dia como hoje que Zé recebeu a notícia que um de seus melhores amigos havia falecido. O homem era caminhoneiro, em uma viagem para o norte se envolveu em um acidente e acabou não suportando os ferimentos. Zé da Barbina já estava em seu segundo gole celebrando a amizade que cultivou durante anos com o Jorjão, o pobre do defunto, quando soube que devido a distância, o corpo só chegaria na cidade no final da tarde. Não haveria velório, seguiriam direto para o enterro. Quem quisesse prestar uma última homenagem ao morto, que esperasse pelo corpo na porta do cemitério.

Zé da Barbina que a essa altura já tinha pedido umas quatro “saideiras”, seguiu para o local, para esperar o cortejo. Não demorou para descobrir um botequinho lá perto do cemitério, e lá continuou de onde havia parado, e logo arrumou um parceiro de gole.

Quando o defunto chegou, Zé já quase que não parava de pé, de tantas saideiras. O cortejo adentrou-se no cemitério, Zé e seu companheiro de copo o seguiram, mas a tonteira era tamanha que Zé acabou caindo entre os túmulos, e o amigo na tentativa de ajudá-lo caiu também e apagou. Os dois vencidos pelo álcool, jaziam vivos por entre os mortos. Terminado o enterro, todos se foram e ninguém deu por falta dos pobres bêbados.

Junto ao muro do cemitério cresceu um coqueiro-jerivá, que uma vez ou outra dava cachos de coquinhos suculentos, que eram disputados pela criançada. Durante o dia, os zeladores do cemitério afugentavam a molecada, pois não foram poucas as vezes que na disputa pelos coquinhos, estragaram alguns túmulos. A molecadinha para pegar as frutas, tinham que vencer o medo e ir à noite, depois que os zeladores fossem embora. A colheita daquela noite já havia sido planejada na véspera. Dois meninos ali da vizinhança arrumaram um bambu bem comprido, e sacudiram o cacho, e no mesmo instante uma chuva de coquinhos caíram. Depois da colheita, veio a divisão. Os dois juntaram todos em um único monte e começaram a divisão:

-Um pra mim, outro pra você! Um pra mim, outro pra você !

Do outro lado do muro, Zé acordou com a falação dos meninos. Assustado, cutucou o amigo que remexia ali do seu lado:

-Acorda! Acorda! Cê tá escutando?

-Tô! Tem um tempão que tô ouvindo isso.

-O que ocê acha que é?

-Num sei não, mas acho que é Deus e o capeta repartino as alma!

Zé arregalou os olhos e na peleja, conseguiu ficar sentado. Quando esticava os braços para ajudar o amigo, se virou para ouvir melhor a conversa que vinha lá de fora:

-Já acabamos.

-Acabamos nada, ainda tem os que estão lá dentro. Aqueles lá, não posso deixar escapar!

-Pra mim eles não servem. Estão podres e sujos. Só gosto dos limpos.

-Oba, pode deixar que sei muito bem o que vou fazer com eles. São meus.

Quando Zé se virou para ver a reação do amigo, notou que ele já estava longe, cambalenado por entre os túmulos em busca do portão.

Sem ter tempo para pensar, saiu em disparada atrás dele.

O apuro curou parte da tontura, e já bem longe do perigo, os dois pararam e ali mesmo na rua Zé propôs um trato:

-Tivemos uma segunda chance... cê escutou. O coisa ruim queria nóis. Disse que não ia deixá nóis escapá, mas nóis vamo, nóis tem que escapá! Os limpim Deus gosta. Vamo largar essa vida de álcool e de jogo!

- E de cigarro! Vamu ficá limpim... de hoje em diante, limpim!

Promessa feita, promessa cumprida! Até hoje Dona Barbina agradece pelo milagre recebido!

Meire Boni
Enviado por Meire Boni em 19/09/2012
Reeditado em 19/09/2012
Código do texto: T3889919
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