ARDóSIA 34 : Rubor grená
De dentro do carro, Sol vê aquela mulher toda de negro, ignorando o calor do dia. “Quem é aquela, Gil?”. Alguns segundos até reconhecê-la e o rapaz, surpreso:
- Carambola, é a Tânia. Nem sabia que tinha saído do hospital. É uma biscate... Desculpa, mas dá pra todo mundo.
- Caraca, amor, aqui em Ardósia é mesmo diferente, né? As vadias saem vestidas como beatas de igreja? É assim que pegam os caras? Que é isso, tara ardosiense?
- Deve ser por causa do marido, que morreu. Depois que merdeou, resolveu arrepender. A Laura diz que ela já tinha mudado antes, mas eu duvido.
- Ah, dane-se, é sempre triste perder o marido. Ela tava acompanhando ele no hospital?
- Não. Ele foi assassinado pelo ex-amante dela, que também meteu dois tiros nela. A Tânia sobreviveu, mas se recuperava no hospital. Aliás, o Roni chegou a ser preso como suspeito!
- Menino! Me conta o bafão!
- Longa história, Sol... Outro dia. Hoje vamos conhecer minha cidade. Cê acredita que ninguém consegue achar o caminho até aqui? De vez em quando aparece um ou outro perdido.
Com cara de desdém, rebate: “Devo ter perdido a saída na estrada, daquela vez!”.
É a primeira vez de Sol, a namorada grávida de Gil, em Ardósia. Temeroso com a reação nada discreta dos amigos, prefere levá-la ao comércio, ao Lago da Pacificação... Téo, Roni e companhia seriam conhecidos oportunamente. Bem oportunamente. Quem sabe, quando o ginásio da cidade sediar um dos jogos da Copa do Mundo no Brasil, em 2014? Enquanto a Fifa não chega, passam pela farmácia, buscando algo para enjôos. O casal vasculha uma das prateleiras e Sol percebe uma mulher que os observa de longe, quase na entrada. “Perdeu alguma coisa, garota?”, grita a circunspeta Sol. O pobre Gil está mesmo rodeado de pessoas cordadas!
A tal mulher aproxima-se roxa de vergonha. É Laura, com Téo atrás. Devidamente apresentados por Gil, Sol desculpa-se revelando ansiedade por conhecê-los.
- Desculpa nada! Eu parecia mesmo uma psicopata atrás de vocês, né? Até que demoraram pra perceber!
- Desde que hora vocês estão atrás da gente? – surpreende-se o mulato.
- Como é que tá a gravidez? – desconversa Téo.
- Tem sido difícil achar uma posição pra dormir, mas tá bem, apesar de uns enjôos mais chatos. Estamos procurando umas coisinhas aqui na farmácia.
- Com certeza não é camisinha! – gargalha Laura.
Gil, olhos esbugalhados, não respira. Téo finge conferir o preço de uma pasta de dentes noutra prateleira. Apesar da apreensão inicial, Sol também ri, e completa “camisinha não, mas gel lubrificante até que não seria ruim!”.
- Com esse barrigão, mulher? Não acha posição pra dormir, mas pra transar...
- A gente dá um jeito, boba! – eram amigas íntimas! – O Gil fica com mais receio que eu, se contorce todo! Parece uma Daiane dos Santos feiosa e de barriga!
- E antes do doping!
Em meio às risadas femininas, uma constatação. A pele mulata pode, sim, enrubescer de vergonha. Gil está grená. Téo puxa a esposa pelo braço, alegando um compromisso que ela não se recorda. Teme perder a amizade do amigo “vinho tinto”. Mesmo constrangido, o corado percebe o divertimento da namorada. Saem os quatro rumo à sorveteria.
“Doidinha, mas gente boa” é o comentário quase sussurrado de Laura ao marido. Chocolate, creme, morango e pistache com vinho são os sabores escolhidos. O último, claro, é o de Sol que, logo após a primeira saboreada, comenta “Que budum é esse?”.
O cheiro é bem conhecido dos amigos. Roni está por ali.
- Valeu, hein, pessoal! Divertindo-se sem mim! Agora é tudo casalzinho... vou ter que arrumar alguém pra sair com vocês também?
- Calma, Roni. Fica com ciuminho não. Encontramos os dois por acaso – ressalva Laura.
- Ou quase – completa Gil.
- Pega um sorvete você também. Sou Úrsula, namorada do Gil, mas pode me chamar de Sol.
- Tudo bem? Eu já tava achando que você era fantasia da cabeça oca dele! Nunca aparecia!
- Como vê, sou carne e osso! Ou melhor, nós dois somos! – apontou para a enorme barriga, para risos gerais, em especial de Laura, animada em, finalmente, ter outra mulher para conversar nos passeios com Téo e seus colegas.
- Ah, ah, ah! É verdade... Minha tia Gerônima dizia que, por causa do tamanho da barriga, a mulher grávida comeu uma azeitona.
- Já ouvi isso também.
- Mas você comeu uma melancia, né? Olha o tamanho da pança!! Caraca!
Roni, animado com sua espirituosidade, ri esperando ser acompanhado pelos demais.
Eco.
Gil até ameaça acompanhar o riso, desistindo ao perceber a cara da namorada. Laura olha para Téo de um jeito que conhece muito bem, a cada bobagem que o amigo comete: boca torta, vista pra cima... Roni fica mudo. Assim como todos.
Cabe a Sol quebrar o gelo:
- Você é bem fedido, né?
O clima esquenta. Téo e Laura decidem sair com Roni para... qualquer lugar. Sol, xingando, vai com Gil terminar o sorvete às margens do lago. “Tava indo tão bem...”, desanima-se o sóbrio rapaz. Nem parece acostumado com Ardósia.