ARDóSIA 33 : Nem mãe nem puta
O ruído da porta se fechando atrás de si é um alívio. Não agüentava mais sentir aqueles olhares. Apenas o tempo de apontar na rua com o táxi, o percurso até a casa, pagar o motorista e poucos passos até a porta. Finalmente só. Alegria, entretanto, está distante de ser o sentimento que pulsa seu coração. Pela primeira vez em vários anos não terá Naldo ao seu lado, para o bem ou para o mal. Tânia acaba de chegar em casa após sobreviver à tentativa de assassinato de Tucão e um período no hospital. Seu marido, Naldo, não teve a mesma sorte. Ela nem pôde acompanhar o enterro. “Preciso passar no cemitério”; não hoje, talvez amanhã. Quem sabe no final da semana. Ou mês que vem. A ficha caía naquele momento, e é dura, pesada.
Tânia sabe que boa parte dos olhares que a seguiram na rua eram desaprovadores. Ela é quem deveria morrer. Ela é a traidora. A puta. Pouco importa. Tem consciência do que havia mudado em sua vida nas semanas anteriores ao incidente, da reconciliação, do arrependimento. Aos habitantes de Ardósia, ela não passa de vagabunda. “Realmente, tive meus momentos”, analisa numa breve e irônica reflexão. Enfim, dane-se Ardósia. O que faria dali por diante não tem nada a ver com a consideração alheia. É o que quer, é como se sente.
Cai de joelhos, trêmula. Quase chora. Seca as duas lágrimas que iniciavam sobre o rosto e reergue-se. Puxa o ar lá do fundo. Reiniciar a vida? Vamolá.
No quarto, deixa abertas as quatro portas do guarda-roupas destinadas para si. (Pobre Naldo, tinha apenas duas portas, mas é sempre assim com os homens...) Tânia observa os vestidos. Dúvida. Não, não há dúvida. Separa os modelos mais sexys, as calças justas, os decotes que seu marido (e, a bem da verdade, muitos homens) elogiavam como “deliciosos”. Joga-os sobre a cama. Tem muita coisa ali dentro, sobram ainda diversos modelos, mais sóbrios, “coisa de tia”, como Tânia mesmo dizia. Pois é a tia quem assume forma naquele momento, tomando espaço da mulher fatal que, se não está morta, desfalece à míngua de forças. A roupa que tem no corpo, nada escandalosa mas realçando os seios, também é retirada e deixada sobre as demais. Quer expelir qualquer lembrança do hospital - foi com aquela blusa e aquela calça que chegara de lá. Esse mesmo ensejo faz com que retire ainda a calcinha e o soutien, desprezando-os naquela metafórica fogueira. Nua, no meio do dormitório. Longe de sentir-se sexy ou desejada, está frágil e indefesa. Vai até a lavanderia e de lá traz dois enormes sacos plásticos de lixo. Joga todas as roupas dentro, algumas usadas uma única vez.
Abre as gavetas dos lingeries. Qualquer peça com renda ou transparência entra nos sacos. Permanecem intocáveis os beges (quando Naldo, desanimado, percebia a esposa de bege, sabia estar na “entressafra”) e as calçolas enormes, ideais para dias de menstruação. Não sobrou muita coisa. Precisaria conversar com Kiara, sua colega da EntreLaços, loja onde trabalham, e que revende calcinhas a preços abaixo do mercado. Com um tanto a mais de esforço do que gostaria, fecha as sacolas com um forte nó. Percebe, então, um dos lingeries “de sedução” escondido no fundo de uma das gavetas... “Deixa pra lá”, resignou-se. Além do mais, nunca se sabe as surpresas de amanhã...
Para deixar os dois enormes sacos na rua, onde certamente não permaneceriam muito tempo, não poderia ir nua. Senta-se na cama, cansada. Precisa vestir-se. Precisa comprar mais vestes decentes.
Aqueles olhares do lado de fora... “Dane-se”.
Em lentos movimentos, Tânia levanta-se e passa a cobrir o corpo. Calcinha enorme e bege. Soutien discreto... e bege. Confere as calças, em sua maioria jeans. Não é o que quer. Encontra uma saia negra, há muito escondida naquele canto do guarda-roupa, comprida, abaixo dos joelhos. O sol está forte, saia cai bem. Entre as blusas, não deseja nada colorido e aquela peça igualmente preta servirá. Nada de decote, ao contrário, fechou até o último botão, no melhor estilo “Forrest Gump”. A manga comprida não combina nada com o calor daquele horário. Contraditória, não se importa. Sapatos, saltos baixos, escuros para completar o visual.
Agarra as sacolas e dirige-se à porta da rua. Na sala, avista um enorme guarda-chuva quase ao mesmo tempo em que observa sua imagem no espelho. Jamais se imaginaria com aquele visual, ao menos não após sair da casa dos pais. Está parecida consigo mesma, aos 12 anos. Olha novamente o guarda-chuva. “Vai me proteger do sol”.
Na rua, dona Custódia varre a calçada, e fica paralisada ao ver Tânia, que há pouco chegara do hospital, saindo daquela maneira. A viúva coloca os sacos sobre a lixeira. Só cabe um, o outro precisa ser deixado no chão. Dona Custódia troca a vassoura pelo celular. Aquilo não é notícia para se repassar mais tarde. Tânia abre o guarda-chuva, tal qual sombrinha. É enorme e negro. Caminha. Precisa encontrar uma butique. “Até acho que existe ex-bicha, mas nunca vi ex-biscate!”, proclama dona Petúnia, à janela, duas casas ao lado de Custódia. “Foda-se”, pensa Tânia. Aqueles olhares, o murmurinho dos comentários... nada daquilo a afeta. Naquele momento, deixavam-na mais forte. Mais confiante. Ninguém melhor que ela sabe o que fizera de errado. E de certo. Quais as motivações. O que fora imperdoável... ou não. E o que sente agora. O que pretende fazer. Só ela. E, talvez, Deus. O resto? Bem, não vou ficar repetindo palavrões...