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OS PÉROLAS DA MAUÁ

 
            É sobejamente sabido que mentes e corpos desocupados tornam-se domínios do diabo. Sem mais nem menos, foi o que aconteceu.
Naquela manhã surpreenderam-me enganchado na rústica janela do quarto que dava para a rua.  Cangava grilos absorto na solidão e no silêncio local, quando os três chegaram. Nas mãos de um deles, luzia garrafa de cerveja preta junto à meia dúzia de velas coloridas.
Os cumprimentos vieram e com eles a resposta à minha  curiosidade crescente: vinham do lado do mato dos padres ocasião de depararem, em erma encruzilhada, com o despacho. Desprezaram o resto e se apossaram do que traziam nas mãos.
Rimos do fato. Aconselhados pela inocência, ali mesmo  passamos a bebida no papo, e ali mesmo confessaram a verdadeira razão da visita: filar abacaxis no roçado da Mauá!
Filar frutas pelos quintais não passava de  divertimento,  exercício de audácia e traquinagem, nunca um roubo propriamente desde que não passasse disso. Entendíamos os frutos, bênçãos da natureza, constituindo bens comuns, um comunismo imaginado e praticado, relevando os ônus da produção.
Os abacaxis da Mauá eram especiais, já os provara: pérolas legítimos de casca roxa, descascados exibiam a massa amarelada pálida minando abundante caldo doce,  o que os tornava distintamente apreciáveis.
Valia à pena.
De resto, persuadiram-me até com certa facilidade de que não haveria perigo, tudo haveria de correr sem nenhum percalço. E lá se foi o tolo a consentir e a conferir a solerte proposta.
A tal roça fora plantada num declive suave, beirava o rego, estendendo-se 700 metros acima, terminando junto à cerca farpada que a protegia; junto a ela, por fora, vigorosos colonião nativos estendiam cerrado adentro.
Justamente por eles, seguindo em direção à plantação, adentramos os quatro até o limite da cerca e observamos. Só então me falaram da árvore que se via no centro do imenso tabuleiro plantado; à distância pareceu-me um gigantesco pé de óleo, farto de folhas e admirável tronco suportando arquitetada armação de tábuas na forma de mirante. De lá, segundo os companheiros, vigiavam o campo. Via-o agora desocupado.
Rastejando, então, entramos as leiras. O plano consistia quebrar os frutos deixando-os de lado, e posteriormente levá-los ao capinzal. Quatro ou cinco cada, não mais.
Enfiei-me barriga adentro onde, cerca de dez metros além observara frutos melhores. Nunca me dera filar ali, razão de não contar com o imprevisto: os abacaxizeiros ao encontrarem condições favoráveis cresceram em demasia, elevando os frutos, vindo  dificultar a ação de quem rastejava; espinhos abundantes por sua vez importunavam as mãos, quando não, feriam o próprio rosto. Por um momento quedei-me imobilizado, indeciso.
Por fim, ansioso, ergui a cabeça na procura do mirante. Estava tal  e qual o vimos na chegada. Animei-me.  Já de cócoras, --- a nova posição embora me expusesse facilitava na ação --- elevei o braço e “torei” o vistoso fruto que se elevava ainda acima; foi aí que ouvi o latido vindo de longe. Juntei o troféu ao corpo e assuntei. O cão agora latia insistente atraindo-me a olhar novamente rumo a árvore. O que vi, gelou-me!
Alguém, apressado, procurava ágil alcançar a plataforma da vigia!
Fomos descobertos!
Dorso inclinado, me pus a correr rumo à cerca, mergulhando por baixo do arame a tempo de ouvir o som da cartucheira estrondear perto. Logo em seguida outro tiro.
Estranhamente silenciou; o cão não mais latia --- alguns deles se imobilizam perante tiros. Alívio!  Ter cachorros no alcance, frente àquele terreno desfavorável, seria correr grande risco.
Mesmo assim embrenhei fatigado no capinzal; pensava  fugir dali apressado. 
Finalmente senti-me seguro. Refeito do susto, repassava as cenas do acontecido sob um marmeleiro;  súbito, vozes se aproximavam em algazarra. Eram os três.
Ao me avistarem, de imediato pediram para ver o fundo da calça. Pilhéria.
Em tom de bravata acabaram por dizer que os tiros de espingarda eram de sal grosso, não matam, apenas esfolam o couro.
Nenhum? Perguntei-lhes desinteressado pelo assunto dos tiros.
Nenhum. Responderam.
Saímos os quatro; eu, rumo à minha tosca e solitária janela.