ARDóSIA 32 : Redes sociais
Passara por aquele boteco diversas vezes, mas jamais entrara. Até hoje. O calor em Ardósia está intenso e, por isso, Vera decide comprar água ali mesmo. O local não é daqueles fétidos, cheios de bêbados, ao contrário, é limpo e simpático. Homens e mulheres, em sua maioria “bem apessoada”, conversam, comem seus petiscos e tomam suas bebidas. Sábado à tarde, nada demais. O homem atrás do balcão não lhe parece estranho, talvez tenha sido seu paciente, impossível recordar-se de todos os rostos. Pede-lhe uma garrafinha d’água. Jesuíno atende-a prontamente, com um sorriso no rosto. “Ele me reconheceu”, pensa Vera, “E eu sei o nome desse homem?”. Antes de qualquer conversa constrangedora, resolve questionar sobre a menina – “já vi essa magrela também” – sentada num banquinho ao lado do balcão, estática, olhos arregalados.
- Tá tudo bem com ela?
- É uma tonta! Desculpe, dona. É minha filha. Ficou assim depois de uma conversa que a gente teve. Tá achando que sou do tempo de mil novecentos à válvula.
Vera sorri. “Lindamente”, completaria Jesuíno, não fosse ele casado. Curiosa, pergunta o que ocorrera. Didaticamente, o homem descreve o diálogo.
“Pai! Cê tinha muitos “folouers” no twitter?”
“Fóloquê?? Sabe que nem mexo em internet, menina. Deixa o papai trabalhar um pouco.”
“Sei... Pai, quando você era criança, como eu, ou um pouco mais velho, como o primo Tobias, tinha muita gente no teu twitter?”
“No meu tempo não tinha tuíter, filha.”
O primeiro olhar atônito.
“Putz! E fazia o quê na internet?”
“Não tinha internet também, não.”
A voz quase se foi, mas a garota ainda teve forças para perguntar:
“Caraaaaaaca... Cê é mesmo velho, hein, pai? Então fazia o quê com o computador? Conta de matemática?”
“Olha o respeito, menina! E quem disse que tinha computador? No meu tempo não tinha tuíter, nem internet, nem computador!”.
- E aí a Idônea ficou assim, com essa cara de bocó. Faz uns 40 minutos. Deve pensar que é filha de Matusalém... Se é que ela sabe quem é Matusalém... acho que ele não tá no tal tuíter!
Vera ri, mais uma vez. “Lindamente, mais uma vez”.
- Idônea? Estou me lembrando do senhor... Aquele dia, nos tapetes do Corpus Christi.
- Isso mesmo, a senhora é mãe do Cateto e da Hipotenusa. E pode me chamar de ‘você’.
- Não esqueceu! Que lindo!
Agora foi a vez de Jesuíno sorrir, mas durou pouco por causa da dor ao mordiscar o picolé.
- Dor de dente?
- Desculpa... Tá bem gelado...
- Olha, sou dentista. Vou deixar o telefone do consultório. Vai me procurar qualquer dia, marca uma consulta. O sorriso é o cartão de visita de todos nós! Dou um descontinho se levar os filhos e a esposa.
Esposa, aliás, que do outro canto do balcão observa atenciosamente aquele “conversê”. Eva é brava... Jesuíno sabe e, por isso, vai logo cortando “o papo furado”. Entretanto, assim como quem joga um velho recibo fora, guarda discreto o papel com o telefone no bolso. Vera paga a água, dá mais um sorriso e vai embora.
- Toma vergonha, seu descarado... Vai atender os rapazes lá no fundo.
- Fiz nada não, Eva, deixa de ser chata!
Não foi apenas a esposa, porém, que notou algo estranho no ar.
- Querem mais alguma coisa, meninos? Outro suco, Laurinha?
- Ó, Jesu! Tá fazendo sucesso, hein, safado?!
Téo e Laura num canto, Roni e Gil do outro, caçoam do gorducho.
- Fica quieto, pessoal! A Eva pode escutar e achar que é sério!
- É sério?! – Laura cai numa gargalhada.
- Ô gente, a moça é viúva não faz muito tempo... Eu sou casado... Não gosto de encrenca.
- Viúva? – pergunta Roni.
- Ela me contou outro dia, no Corpus Christi.
- Tá viajando, Jesu? Só se morreu ontem! A moça foi largada pelo marido, o cara foi embora pros lados de Ourinhos. Trocou ela por uma de 25!
- Tadinha...
- Agora pode apaixonar, né?
- Ô gente! Respeita aí... Ou pelo menos brinca mais baixo!
- Bonitona, ela! – observa Laura, abaixando o tom de voz – Deve ter uns cinquentinha, mas tá enxutona! Viu os quadris?
- Não chega aos pés de Sol, mas dá pro gasto...
- Aí, Jesu! O Gil tá apaixonado por uma mulher grávida, que ele só viu uma vez na vida! Pode? – pergunta Téo.
- Claro que pode... Só que engravidar no primeiro encontro... Não é bom não...
- O filho não é dele!! É de outro! O cara já começa o namoro corno!!
- Aê! Cês querem terminar a amizade agora na porrada? Então vamo baixar a bola com essas brincadeiras.
- Ô, Gil... Estamos doidos pra conhecer a Sol – apazigua Laura – Mas Jesu, você acha que dá certo namorar alguém que você conhece já prenha?
Jesuíno, porém, já retornava ao balcão. Não tem, nem nunca teve, malícia em seu comportamento. O caráter sempre teve a retidão como pedra fundamental. Admite, intimamente, que o deixou enternecido conhecer uma mulher que compartilha consigo o gosto por nomes “ideológicos” para os filhos. Claro, porém, família sempre em primeiro lugar. Não tem a menor intenção em trair Eva. O fato, puro e simples, é que aquele dente incomoda há tempo demais.