ARDóSIA 31 : Decisões
- Mudaria nossa vida pra sempre...
- Calma, meu doce, não foi agora, será amanhã.
Laura vira o rosto para o outro lado, enxugando duas lágrimas que não obedecem sua determinação de manter-se forte. Embora o teste seja daqueles comprados em farmácia, é o terceiro que, naquele dia, lhe diz: “não, você não está grávida”. Joga-o no lixo, acompanhando os outros dois. Com quase seis meses de casamento, a questão “filhos” começa a ser obsessiva para o casal. Moradia, um tema igualmente delicado, foi solucionado com a doação de um pequeno terreno pelos familiares de Laura. Aos poucos, a casa vai sendo construída. “Dois quartos. Já vamos planejando o cantinho de nosso filho!”, exigiu a esposa. “E meu escritório? Meu espaço pros discos dos Beatles?”, rebateu Téo. “Então que sejam três! Se vira! Sem filho é que a gente não vai ficar, né? E quero logo! Por isso, planeja uma casa com um dormitório só pra ele!”.
Foi com esse sonho, comum à maioria dos casais, que Laura e Téo compraram os testes de gestação. Primeiro um. Com a negativa, buscaram mais dois para confirmar. Instintivamente, a moça tinha certeza que engravidara. Enganou-se. Acontece... Até com o tal sexto sentido feminino.
- Não desanima. Ainda temos muito tempo. A obra tá devagar, você sabe. Até ficar pronta, tenho certeza que a gente engravida.
- Espero que sim. – outra lágrima é enxugada – Um bebê muda completamente a vida das pessoas.
Naquele mesmo momento, em Bauru, Sol e Gil conversam em um shopping. Após semanas namorando pela internet, conheceram-se pessoalmente. O rapaz recém descobre a gestação, já no sétimo mês, da “namorada”. Desistem da caminhada pelas lojas e retornam à mesa da praça de alimentação. Gil observa as batatas fritas que sobram sobre a bandeja. Úrsula, ou melhor, Sol procura desvendar a expressão naquele rosto.
- Tá decepcionado, né? Não é o fim do mundo... Não é contagioso, viu?
- Não é isso...
- Fala olhando pra mim!
- Você devia ter me contado. Há quanto tempo a gente conversa? Tantos segredos e intimidades que a gente trocou...
- Fiquei com medo. Não queria que você desistisse sem ao menos a gente se encontrar. Gostei de você de verdade. E depois de hoje, conversando pessoalmente, pelo menos até agora... Te quero ainda mais...
- E o pai?
- É o Bruno, aquele meu ex-namorado que eu te contei. Se mandou assim que soube da gravidez. Disse que não assume de jeito nenhum... Quando eu te conheci, te contei que tinha terminado um relacionamento pouco tempo antes, lembra? No começo, não falei da gravidez porque não tinha sentido, era só mais um rapaz da internet. Quando ficou sério, tive receio...
- Poxa, Sol... Como é que você engravida de um cara que não quer saber de você?
- Ele dizia que me queria! E eu, quando tô com alguém, tô de verdade. Me entrego cem por cento. Tudo bem... Já percebi que não posso ser assim, tenho que ir com calma... É que tem muita gente que diz as coisas sem sentir. Não sou assim. Eu me entrego. Estava apaixonada por ele.
- Ainda tá?
- Do jeito que amo, odeio. O que ele fez comigo não é digno de um cachorro. E comigo os sentimentos são intensos. Foi com ele... É com você. Quando percebi que a gente tinha tanta afinidade, apesar de todas as nossas diferenças, achei que Deus escrevia certo por linhas tortas. “Esse é o cara”. Não tô procurando alguém pra cuidar de meu filho, oquei? Quero alguém pra me fazer feliz e, por consequência, eu também farei bem a esse cara. Nem tô pedindo pra gente casar ou você assumir a criança... Só quero uma chance pra gente. Nos demos tão bem até agora... Eu sei, mal nos conhecemos, mas por isso mesmo vamos tentar! Se na semana que vem você achar que não dá, acabou. Mas... Vamos...
As duas últimas palavras são ditas com Sol pegando na mão direita de Gil. Ele desvia o olhar ao chão, levantando as sobrancelhas. Ninguém entende as expressões no rosto desse homem! Obviamente, tampouco Sol.
- Dane-se!
A garota larga a mão do rapaz e se levanta – meio desengonçada, é verdade –, veste o agasalho e sai pelo corredor do shopping. Está com raiva. De si, de Gil, da barriga, de tudo. Principalmente de si. Não olha para trás e nem o faria caso ele a tivesse chamado. Mas Gil sequer esboçou chamá-la...
Está tudo dando errado. A gravidez indesejada, o namorado que se mostrara canalha, os pais decepcionados com aquilo, o emprego que era uma merda. Então aparece Gil... A verdade é que homem nenhum presta. Covardes. Enquanto têm a recompensa sexual – ou a esperança dela – te tratam como princesa; na hora de encarar a vida em suas agruras, ser maduro, são todos uns bostas. Os pensamentos atormentam a cabeça de Sol, enquanto as lojas passam rapidamente ao seu lado. Os olhos mal enxergam com nitidez... As lágrimas... Não importa, criaria o filho sozinha. Nem os pais precisam ajudar, não imploraria. Há anos saíra de casa e se virava muito bem por conta própria. Ou quase.
Naquele momento, a raiva a impede de perceber ombradas e bolsadas no transcurso do corredor. Não tem como, entretanto, deixar de sentir o tranco quando aquela mão forte e escura agarra seu braço, obrigando-a a parar.
- Espera... Você não me deixou falar.
A garota ia dizer: “sinto que a gente tem tudo pra dar certo!”, mas se conteve. Orgulho. Caramba, é tão difícil ser feliz! Coube a Gil continuar.
- Não pode exigir que eu não fique surpreso com a gravidez. Assim, de uma hora pra outra... Eu também criei um monte de expectativas a nosso respeito que, é lógico, podem não dar em nada.
- Vamos ao menos tentar...
- Claro que vamos...
As palavras foram seguidas por um delicioso e prolongado beijo. Como o leitor já esperava, aliás. Em seguida, Gil não se contém, confidenciando-lhe ao ouvido.
- A gente não pode terminar sem eu descobrir onde está a segunda tatuagem...