ARDóSIA 30 : Tatuagens

A estrada é extensa e retilínea, parece não ter fim, ora entre campos esverdeados, ora margeando plantações de cana-de-açúcar. O carro segue em alta velocidade, embora obedecendo ao limite indicado nas placas; há poucos veículos rodando naquele horário, faltando quinze minutos para as quatro da tarde. Tão rápido que passam, as faixas do asfalto parecem ser engolidas pelo esverdeado Fiat Uno. Vez ou outra, solavancos por conta dos buracos mal remendados no solo. De janela aberta, ambas as mãos no volante, olhar preocupado mirando o horizonte, o mulato motorista tem os crespos cabelos discretamente assoprados pelo vento. Aos poucos, aparece ao longe um conjunto arquitetônico moderno, formas arredondadas, cores vibrantes. O Uninho prossegue na mesma direção, não há como escapar daquela obra, seja pela beleza, seja porque se estende por toda largura da rodovia, impossibilitando qualquer desvio. O local não deixa dúvidas quanto à sua modernidade, transparecendo ser recente. O motorista é obrigado a diminuir a velocidade... diminuir... diminuir... até parar bem no meio daquele conjunto de cabines paralelas.

- Caraca, tá caro esse pedágio, hein?

A cobradora apenas sorri, como quem diz “pois é, e eu com isso?”.

- Da última vez que passei aqui, não tinha nem começado a construção...

- Inauguramos faz dois meses, senhor. Aqui está seu troco. Boa viagem.

- Brigado... Faz tempo mesmo que não venho pra estes lados. Bão... Bom trabalho procê!

Gilvar, ardosiense de quase 30 anos, segue pela rodovia em direção a Bauru. Vai encontrar-se com Úrsula, paquera da internet, em um shopping da cidade. Precisou de um mês para recuperar a confiança da moça, depois que ela não encontrou o caminho para Ardósia, apesar de todas as indicações; sentiu-se vítima de embromação. “Cuméquié? O velho não deixou mais que ninguém chegue na cidade? Como assim? Bruxaria? Você pensa que a gente tá num desses contos idiotas de gente que pretende ser escritor?”. Pois é, a moça pegou pesado e Gil precisou suar até convencê-la a um novo encontro, mesmo que fosse “em campo neutro”. Nem Ardósia, nem Jaborandi, sua cidade. Bauru, no meio do caminho, “e em lugar público, no meio da tarde!”. Exigências... Ah, mulheres!

Agora, já no tal centro de compras, Gil passa quase dez minutos no estacionamento até encontrar uma vaga. “Tô lembrando porque não gosto de sair de minha cidadezinha...”. Combinaram encontrar-se na praça de alimentação, para onde ele se dirige a passos rápidos, nervoso. “Ela viu meu cabelo ‘black power’ nas fotos, não pode fazer cara de surpresa!”, convence-se. Entre a angústia e o desânimo, Gil observa aquela centena de mesas ocupadas por outra centena de pessoas. O ruído de vozes mistura-se com talheres, pratos e risos. A cabeleira crespa vai ficando atordoada. Resolve caminhar ao redor da praça, conferindo a muvuca, em busca de uma jovem moça de compridos cabelos negros, pele clara, lábios carnudos e duas ou três tatuagens, ou “tattoos”, como ela descreveu na net. Gil só pensa nos lábios e nas tatuagens... Ah, homens!

Nada de encontrar a garota. O celular toca.

- Gil! Que bom que você veio!

- Cadê você, Úrsula? Não tô te vendo! Cê já tá na mesa? Levanta pra eu te ver!

- Não tá me vendo? Ai, ai, ai... Você é mais atento pelo computador. Vira pra trás. Tô bem aqui, na fileira do corredor; você passou ao meu lado!

O rapaz se vira. Procura. Nada.

- Sou eu, querido! De blusa vermelha, ombro de fora!

Prestando atenção, visualiza uma mulher ao celular, umas oito mesas à sua frente, de blusa vermelha caída sobre o braço direito, deixando o ombro exposto. Ele confirma pelo telefone:

- Úrsula?

- Isso, querido! Vem aqui, senta comigo!

Gil dá passos lentos. A moça está diferente. Aparenta mais idade, ou talvez seja a pesada maquiagem no rosto. Não se parece muito com as fotos, ou mesmo com a imagem da “cam”; o cabelo está claro, deve ter feito luzes. Cabelos mais ralos, pra dizer a verdade. Algumas rugas a mais. Lentes deixaram os olhos também com coloração diversa. O rapaz olha fixamente para Úrsula, que percebe e passa a fitá-lo também. Prosseguindo no lento caminhar, estão a poucos passos um do outro.

- Você tá fumando?

- Não te contei, né? Desculpa...

O casal está a um passo um do outro. Não imaginou encontrá-la com as unhas pintadas de roxo... Úrsula desliga o telefone. Perplexo com as “novidades”, Gil ainda tem o aparelho no ouvido; através dele, ouve uma gargalhada.

- Algum problema, garoto?

- Você não é Úrsula, né?

- Está me confundindo com outra pessoa, rapaz.

Na mesa em frente, às costas de Gil, as risadas do celular ganham mais vida. Ele se vira e lá estão os lábios carnudos e uma tatuagem no lado esquerdo do pescoço, quase na nuca. É uma fada; parece a Sininho, aquela do “Peter Pan”. A tatuagem, não a garota.

- Não resisti quando vi que essa mulher também falava ao celular. Só não pensei que você fosse cair direitinho!

- Muito engraçada. – responde o rapaz, enquanto a cumprimenta apertando-lhe a mão. Úrsula, a verdadeira, chegou a oferecer o rosto para um beijo. Ficou no vácuo. Gil sorri amarelo... pergunta como ela está. Extrovertida, Úrsula conversa como se continuassem pelo computador.

- Gostou da tattoo? É uma fada, não te disse? Pelo micro não dá pra ver direito. A outra tatuagem não dá pra mostrar. Pelo menos não aqui no shopping.

- Você é doida, Úrsula.

- Deixa de ser bobo, Gil, parece que a gente já se conhece há tanto tempo... Aliás, não me chama de Úrsula não... é Sol. Já te disse!

- Tudo bem... é que não entendo o porquê de Sol...

- Era Sula, meio sertanejo. Acabou Sol.

A conversa prossegue; Gil busca lanches para ambos. Papeiam a respeito de assuntos já dissecados via micro e também sobre novidades, como a timidez pessoal do mulato.

- Teu sorriso fica ainda mais lindo envergonhado...

Golpe de misericórdia. Gil está apaixonado. Ah, homens...

Depois de quarenta minutos, convida a moça para passearem pelo shopping. Quem sabe um cinema? Ela concorda, embora constrangida. Ele sorri:

- Vai dizer que agora você é que será a tímida?

- Putz... Tem algo que eu preciso te contar. Achei que seria natural, mas a gente se deu ainda melhor do que eu imaginava... Eu gostaria muito que continuássemos nos vendo... e tem algo que eu não te contei.

- Não sendo você uma assassina...

- Tonto!

- Vem! Você me conta enquanto a gente confere os filmes que estão no cinema.

Úrsula, ou melhor, Sol fita-o nos olhos. Levanta-se. Tira a blusa moletom que veste sobre a delicada camiseta.

Agora é Gil constrangido. Olha para o celular; naquele momento é óbvio que ninguém lhe prega uma peça. Olha para a garota. Olha para o chão. Retorna os olhos para Sol, parada ao lado da mesa, vestindo apenas um jeans e a camiseta, quase um top, deixando a barriguinha à mostra. “Barriguinha” é eufemismo. Está grávida.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 01/09/2012
Código do texto: T3860328
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