ARDóSIA 29 : Falta de sorte!
Aquela Brasília 76, alaranjada, já chamaria a atenção por seu visual obsoleto, mas é o ruído do motor – nada potente – que impede qualquer possibilidade de discrição em sua passagem. O velho Nicolau, conferindo a correspondência da semana em frente de seu casarão, observa desaprovador aquele monumento ao mau gosto.
Do carro, um senhor sorridente, lá pelos seus 50 e tantos anos, camisa florida e óculos escuros, transmite felicidade e, diriam alguns, até orgulho em ser percebido pelo veículo nada convencional neste século 21.
“Véio, adorei a cidade! Muito mané junto num só lugar. Capaz d’eu ficar rico em menos de um ano”, matutou Virgínio ao volante de sua caranga. Nas últimas semanas, passara pra frente uma série de cheques sem fundo e até mesmo furtados, ou melhor, “furtados não!”, explica o sujeito, “cártulas cuja licitude da origem depende do ponto de vista legal de quem expõe a situação”. Poucos entendem, e todos desconfiam de sua honestidade. Os comerciantes de Ardósia, empolgados com a novidade chamada “turista”, aceitam sem maiores cerimônias os pagamentos em cheque, cartão, ticket e o escambau.
Sabadão nublado, quase uma da tarde, Virgínio resolve almoçar naquele boteco que, apesar de pequeno, parece aconchegante e limpo. “Olha a cara de mané do pessoal. Aquele gorducho tá pedindo pra ser tapeado!”.
- Qual a graça, amigo?
- Jesuíno, senhor! Que vai ser? Uma branquinha?
- Obrigado... Mas agora é hora de forrar a pança. Manda um comercial com uma cervejinha gelada.
Nunca o ditado “tirar doce de criança” pareceu tão apropriado, afinal havia duas cuidando da caixa registradora, recebendo as contas. Virgínio está tão satisfeito vislumbrando novas possibilidades para sua vida que não percebe a conversa em baixo tom iniciada no balcão. Alguns rapazes da outra mesa foram conversar com Jesuíno que, por sua vez, parecia acalmá-los. Após o inevitável cafezinho ao final do almoço, o forasteiro levantou-se até o caixa.
- Tudo bem, molecada? Qual o nome de vocês?
- Eu sô a Idônea e esse aqui é o Ilícito.
- Ahn... Puxa, mesmo? Diferente... E combina com vocês?
- Num sei, tio. Ilícito quer dizer gordinho? – gargalha a espevitada Idônea, recebendo um cutucão do irmão.
- Bão, vocês podem ver quanto ficou o meu almoço? Aliás, tava uma delícia! Vou esperar lá na mesa terminando meu café, oquei?
Poucos minutos depois, Jesuíno leva a conta para o novo freguês.
- Desculpe... como assim?
- Sua conta, meu amigo.
- Deve haver algum engano... Eu paguei lá para aquelas crianças. Tô esperando o troco!
Jesuíno olhou para trás, não buscando os filhos, mas os colegas que confabulavam no balcão. Fez sinal com a cabeça para que se aproximassem. Virgínio não gostou, mas manteve a calma.
- Que tá acontecendo? Vocês são os donos daqui? O garçom tá dizendo que não paguei a conta?
Jesuíno explica aos outros, com calma, o ocorrido. Coisa de anedota. Virgínio, em poucos segundos, toma ciência que o “garçom” é o proprietário do boteco e os demais, comerciantes que receberam os tais cheques “cuja licitude da origem depende do ponto de vista legal de quem expõe a situação”. Do ponto de vista deles, aquele forasteiro não passava de um vigarista.
- E agora tá querendo dar o golpe usando duas crianças no meio?
Não se sabe exatamente quem disse a frase. Antes mesmo de terminada, partiram pra cima do trambiqueiro, que mais rápido ainda saiu do boteco e conseguiu entrar na Brasília, sempre destrancada por problemas na chave (afinal, quem roubaria aquilo?). Fugiu em alta velocidade, ou tão alta quanto aquele motor agüenta. Alguns dos revoltosos seguiram-no a pé mesmo, mas Ananias, dono da loja de bugigangas EntreLaços, acionou seu Monza 86 e partiu em perseguição. Para não faltar com a verdade, é preciso esclarecer não se tratar dessas cenas dos filmes de ação. Esqueça “Velozes e Furiosos”; está mais para “Mancos e Enfezados”. Monza 86 atrás de uma Brasília 76... Enfim, tecnicamente é uma perseguição! Inclusive chega a despertar o interesse de quem passa pelas calçadas. A maioria reconhece apenas o perseguidor. Em dado momento, o perseguido, em que pese sua destreza ao volante, perde o controle da caranga e entra direto através das velhas grades que cercam uma casa. Aliás, não uma casa qualquer... A Casa Rosada, do velho Nicolau.
Ananias, o perseguidor, ao perceber o local da colisão, finge que não é com ele e passa reto. Uma pequena multidão se aproxima, perplexa e curiosa. No meio, Gil, Téo e Roni, mais curiosos que perplexos. O motorista sai da Brasília meio atordoado; fica olhando para o carro alaranjado e a cerca destruída. “Fiz caca”.
Da porta da casa, com os olhos esbugalhados, aparece o velho ermitão.
- O que é que vocês fizeram com a minha casa! Seus pulhas!
- A gente não teve nada a ver, seu Nicolau... Foi esse rapaz aí, de camisa florida. – acusou Gil, aproximando-se daquele homem que tanto o intriga desde o dia da “visita” ao misterioso casarão.
- Quem é você, que eu nunca vi?
- E quem é você, seu velho?
Os olhos de Nicolau quase explodem em direção ao falastrão.
- Ele é de fora, seu Nicolau... – ao perceber o rosto incrédulo do velho, Gil explica: - Pois é, que coisa, né? Tá cheio de gringo por aí. Da capital, do Rio, até nortista. As pessoas tão chegando aqui todos os dias. Ele é um dos gringos. Pensei que o senhor ficaria sabendo de uma coisa dessas... – Gil não consegue conter a ironia no último comentário.
Nicolau olha o forasteiro e sua ridícula Brasília. Observa os ardosienses ao seu redor. Lamenta sua cerca destruída. E, de olhos cerrados, pergunta-se como aquilo poderia ter ocorrido. Que teria acontecido com sua cidade? Foi isso, então, que questionou, sabe-se lá a quem, em altos brados, erguendo os dois braços esquálidos ao céu:
- Como uma coisa dessas pôde ter ocorrido?? Como pude permitir??
O tempo nublado fecha. Trovoadas são ouvidas. O cenário de perseguição transforma-se em terror. Com os braços abaixados, punhos ainda cerrados, Nicolau diz, entredentes, aos seus conterrâneos: “Vocês não merecem esta cidade. Não percebem que os forasteiros apenas trazem infelicidade e dor para nossa gente?”. Mais duas trovoadas e o velho dá as costas para a rua; lentamente, volta para casa.
Sem entender o motivo da fúria, Gil assusta-se com o toque do celular. É Úrsula, sua paquera. Quase esquecera que estava para chegar.
- Como assim, você não tá achando o caminho? Pegou a saída certa? Mas é no quilômetro 45 mesmo! Que quer dizer com “não tinha nada”? Não, assim você para em Marília!
Gil tenta explicar à garota como fazer para encontrar o caminho de Ardósia; de repente o velho Nicolau retorna, a passos lentos. O rapaz percebe e pede “um minuto” ao celular.
- Tua namoradinha não vem, garoto. Tudo voltou ao normal.
Como? Que aconteceu? Ninguém sabe. Ninguém explica.
“Que falta de sorte!”, pensará o solidário leitor.
“Puta merda”, pensa Gil.