ARDóSIA 27 : O encanto é quebrado
Um tanto mais cabisbaixo que antes, com o olhar menos vivo. Assim está Roni, após a temporada de dias na cadeia. Por sorte, Tânia recupera-se no hospital e, após indicar o DVD que esclareceu o mistério do primeiro assassinato em Ardósia, livrou a cara do rapaz; agora, ele conversa com Gil, que conseguiu o emprego de frentista num posto de gasolina. A bem da verdade, foi seu Ariosto, pai de Gil, quem indicou o filho para a vaga aberta no posto do Janilton. “Tá na hora de você ajudar mais nas despesas de casa, seu vagabundo!”, foi o delicado e persuasivo argumento que o convenceu a aceitar o trabalho.
- Brow, não é fácil... Dormir no cimento, ficar o dia inteiro sem porra nenhuma pra fazer. Só fica pensando besteira, mesmo. Eu me desmiolando tentando achar um jeito de provar minha inocência.
- Pensou, queimou pestana, mas nada, né? – ri Gilvar, tentando animar o amigo. – Se não fosse a Tânia inventar de filmar a transa com o coitado do Naldo, tu tinha ficado uns dias a mais no xilindró.
- Rapaz! Quando eu soube como tinha acontecido... fiquei super feliz de sair livre... e deu um tesão danado de filmar uma transa!
A gargalhada de ambos é interrompida por um freguês, num carro imundo de lama, estacionando ao lado de uma das bombas.
- Gasolina ou álcool, patrão? Vai querer ducha também?
- Completa com álcool, parceiro. Mas me diz uma coisa, que cidade é esta aqui, hein?
- Ardósia.
- Ah tá... Vi a placa lá atrás... Nome esquisito, fiquei na dúvida.
- Eu nem encontrei essa cidade no mapa! – a voz estridente, vinda do banco de passageiros, é de uma mulher, provavelmente esposa.
- Como vocês chegaram aqui?
- E eu sei? A gente quer ir até Pederneiras. Tu conhece? Eu me perdi e parei aqui em Ardósia. Vou ser sincero, nem sei como a cidade apareceu na minha frente. Pelo mapa, a gente devia cair em... onde mesmo, meu bem? Enfim, estamos aqui! Como eu faço pra chegar em Pederneiras?
- Hi, pai, paga o álcool e vamo embora! Olha a cara desses dois! Não sabem nem onde moram! – o comentário sarcástico (mal educado, corrigiriam alguns) é do moleque no banco de trás, provavelmente filho.
Embora grosseiro, o comentário é compreensível, face a cara de tontos que ficaram os dois. Há anos não aparecia ninguém diferente na cidade. Uma tranqüilidade quase doída! Aos poucos, porém, o povo de Ardósia foi encontrando “forasteiros” por todos os cantos, gente que ia para Botucatu, Marília e, de repente, caía ali, sem saber como. “Gente nova, problema novo”, pensam os anciãos. O assassino de Naldo, o tal Tucão, é um problema resolvido. E os outros?
*
- Medina, me explica como é que isso pode acontecer?
- Bem, doutor Corifeu, o senhor, melhor que ninguém, conhece os meandros deste município e pode entender o quão hipotética pode ser qualquer alternativa analisada na atual conjuntura de situações inesperadas...
- Caralho, ó Medina! Pára de puxar o saco. Desde que os primeiros habitantes fundaram Ardósia quase ninguém chega na cidade. Nem com mapa!
Eventualmente, um ou outro perdido que ia ao litoral. Já teve uma caravana perguntando por Padim Ciço! “Perdidos” era pouco... Cada caso, porém, é esporádico, quase anual, e costuma entrar para o folclore da cidade. Naquela semana, surpresa e choque aos ardosientes, começa a aparecer gente de tudo quanto é lado!
- Será que você, caro Medina, pode me explicar o motivo, sem me enrolar? Daqui a pouco colocam a gente no mapa de São Paulo!
- Não faço a menor ideia, senhor Prefeito.
- É isso... – O sorriso substituiu a boca apreensiva daquele homem baixinho, bigodudo e que há dois anos comanda o Executivo Ardosiense. – Agora a gente enche o traseiro de dinheiro!
- Claro, doutor! Vamos cobrar pedágio na entrada de Ardósia!
- Deixa de ser imbecil, homem! Não quero complicar, quero atrair! Com mais gente, gira mais dinheiro no comércio... Podemos trabalhar para trazer indústrias até aqui, o que até agora não interessou a ninguém!
- Claro, doutor... a ideia do pedágio foi idiota... indústrias, sim, é o futuro do desenvolvimento ardosisense!
- Cala a boca! Pensando bem... Não digo pedágio, claro, mas criar um turismo em torno da cidade perdida! – o Prefeito faz um gesto com as duas mãos, demonstrando que perdida vem entre aspas – Já tenho até o slogan: “Ardósia: a cidade que ninguém encontrava! Agora você pode!”. Passeios desconhecidos, caminhos misteriosos...
- Que passeios ou caminhos seriam esses, senhor Prefeito?
- Que catzo isso interessa, caraca? A gente inventa! Meu querido Medina, não sei o que mudou por aqui... Mas uma nova Ardósia acaba de ser fundada...
A conversa termina com o dr. Corifeu e Medina em frente à sede da administração municipal; têm, à sua frente, a mesma visão que Roni e Gil possuem naquele momento, a sete quarteirões dali, no posto de gasolina. Idêntica, aliás, à dos quatro cantos do “novo” município. Centenas de carros com motoristas e passageiros em rostos indecisos, confusos, de quem não sabe em qual ponto da rodovia errou o caminho. Filas de veículos. Quem viu de perto, garante: não eram centenas, mas milhares.