ARDóSIA 26 : Cuméquifoi

A imagem do vídeo tem uns rabiscos estranhos, deformando o que aparece na tela... Eles somem após a pancada que Anilton, o investigador de Jaú, dá no aparelho de DVD. Agora, sim, é possível ver bem o que é reproduzido na televisão. Uma tv de 14 polegadas, mas vá lá, dá pra ver.

O enorme rosto de Tânia, quase colado ao monitor, mostra que ela ajeita alguma coisa. Exclama “agora sim!” e se afasta. Está apenas de calcinha e soutien brancos, contrastando com a pele morena. Ela dá três passos para trás e fica ao lado de Naldo, só de cueca.

- Isso não é meio pervertido demais, Tan?

- Vai dizer que você já não tá excitado, só de imaginar que vamos filmar tudo? – Ela passa os braços pelos ombros do marido, fincando as unhas em suas costas.

- Sei não... – Naldo desvencilha seu rosto de Tânia e fica olhando para o vídeo – E se alguém vir isso? Eu assim... Cueca de couro!

- Ai ai ai! Que tesão! Fala de novo!!

- Meu Padim Ciço! Minha mãe tem um troço!

- E isso é hora de pensar nos pais? Pelamordedeus, homem! A gente vai transar!! Aliás, não era pra filmar esta conversa fiada. A gente já devia estar se pegando!

A moça começa a beijar o pescoço do marido, enquanto as mãos estão em seu traseiro.

Um ruído. Alguém dá dois socos na porta.

- Não acredito! Ah, não... Esquece! Nem vai ver! Ah...

- Pode ser importante, querida.

Aquele homem enorme, apenas de cueca escura, desaparece da imagem do vídeo por alguns segundos. Retorna: “É aquele magricelo da marcenaria. Eles já não deviam ter entregue a cama?”.

- Ó pessoal! Tô ouvindo vocês! É rapidinho!

- Puta merda, não acredito que esse cara veio aqui agora!

- Melhor assim... Vamos deixar isso pra outro dia, tá? Eu vou pro quarto, você se veste e conversa com o rapaz.

- Você nem pense em se vestir!! Vai pro quarto que eu vou dispensar o retardado!

Naldo some do vídeo. Tânia faz menção de procurar alguma coisa, desiste, pega uma camisola jogada no sofá e também desaparece. Ou quase. Percebe-se um pedacinho da lateral de seu corpo. Ouve-se o ruído da porta abrindo. Um diálogo. “Quiéqui você quer?” ... “Nuossa! Como você tá gostosa!! O Naldo tá por aí?” ... “Claro que tá! E você vai sair rapidinho! Fala logo!” ... “É que o chefe quer saber se a cama por ser em mogno, em vez de marfim, que ele não tá achando de jeito nenhum!” ... “Nem começaram ainda? Não acredito!”.

Nesse momento, Tânia se vira e dá alguns passos para dentro da sala. Fica no centro do vídeo. Atrás, vem Roni.

- Olha, a gente tá tentando ligar faz dois dias, mas ninguém atende!

Tânia retorna e faz cara feia.

- Quem mandou você entrar?

De repente, Roni – que estava de costas ao vídeo – cai como um pacote de batatas, de cara no chão, após uma pancada seca. Em seguida, um grito agudo sai da boca de Tânia. Naldo, que continua apenas de cueca de couro, aparece correndo e para diante da imagem de um homem que, pelo vídeo, se vê apenas as costas. E a arma na mão esquerda.

- Pode levar o que você quiser, não vamos reagir! – gritou Naldo.

- Seu trouxa... Nem sabe quem eu sou! Eu tô comendo tua mulher!

- Nããããooooo!

Tânia tenta interromper a fala daquele homem. Naldo olha para a esposa, que está com olhos suplicantes.

- Você é o tal Tucão?

- Tu é corno, mas não é burro, né?

O marido olha para a esposa. Seus olhos... não demonstram medo. Nem raiva. Dois sentimentos que seriam razoáveis frente um homem armado e que, percebe-se, é o amante de sua mulher. Ou foi. Naldo descobrira a infidelidade de Tânia, mas há algum tempo decidiram “reiniciar” o casamento. Apagar o passado. Ainda assim, mesmo ciente de que ela não tinha mais nada com aquele homem, seus olhos – mirando a esposa – transmitiam tristeza. Uma tristeza doída.

- Juro que não tenho mais nada com ele.... – sussurra a arrependida.

- Pois se não vai ficar comigo, não vai trepar com ninguém, sua vadia!

- Ah, seu filhodap...

A frase, que substituiu tristeza por fúria, é interrompida pelo tiro disparado por Tucão, ainda de costas para o vídeo. Uma rajada de sangue explode do peito nu de Naldo, que desaba. Outro grito agudo de Tânia, que aparece fugindo em direção aos outros cômodos, mas o segundo disparo a derruba. Sua queda é apenas imaginada, pois fora do alcance do vídeo, ouvindo-se o ruído de um corpo contra o chão.

Então o assassino se abaixa, coloca a arma na mão de Roni, desfalecido, e depois a joga ao lado. Nesse momento, ao virar-se, o rosto de Tucão fica claro na imagem da televisão.

Pois é, 14 polegadas, mas ajuda bastante!

O homem vai embora, ouve-se a porta se fechando e nada mais acontece no vídeo.

- Então você é o tal Tucão? É mais bonito na tv!

O delegado Custódio, feliz em resolver o primeiro crime grave de sua vida, caçoa do mais novo preso de Ardósia. Roni, inocentado, já está em casa, e agora dois investigadores, ainda com o auxílio do colega de Jaú, Anilton, acompanham o interrogatório do homicida.

- A Tan sobreviveu? Tá melhor?

- Não interessa, safado! Por você, ela estaria morta, como o marido!

- Doutor! – entra o terceiro investigador ardosiense; o aparato policial local não conta com muita gente... – levantei a folha de antecedentes do meliante! Tem mandado de prisão aberto da Delegacia de Casa Branca, faz dois anos! Centoevinteum também!

- Opa! Temos um “seriau quiler” em Ardósia! Nunca tive muito boa impressão com esse povo que vem de fora... Não gosto de forasteiros, meu caro!

- Pô, doutor, sabe que sou de Presidente Epitácio... – reclamou o terceiro investigador.

- É verdade... Mas você, meu amigo, chegou com a família dos Vendetta, tradicional em nossa cidade. Casou com a doce Camila e veio pra cá. E você, seu calhorda?

- Eu vim matar todo mundo!

Delegado e investigadores deram um passo para trás, traídos pelo susto. Recompostos, o criminoso caiu na gargalhada.

- Não me admira que nosso povo não goste de vocês, forasteiros. Pode estar aqui há anos, Tucão, mas nunca passou de um estrangeiro. Olha o estrago que fez em nossa cidade...

- Vocês não passam de um bando de bunda-moles...

- Olha o respeito, rapá!

- É isso mesmo!

Soco na cara. Um dos investigadores. O próprio delegado assusta.

Sangrando pelo canto da boca, Tucão fala baixo, mas firme; “Vocês vão se arrepender... Quem Ardósia pensa que é? Por acaso está livre do mundo externo? Vocês vão ver... Pois agora vai começar a chegar gente de tudo quanto é lado. Até estadunidense. E vão ferver esta porra!

Tucão foi jogado numa cela isolada – até então usada como depósito – e o delegado iniciou os trâmites para transferi-lo a outra cidade. “Não gosto de sem-vergonha que fica rogando praga...”.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 26/08/2012
Código do texto: T3850912
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.