ARDóSIA 23 : Premonições

A pintura daquele antigo sobrado está corroída pelo tempo, a cerca feita de pontiagudas lanças que margeia o terreno está enferrujada e, em alguns pontos, possui remendos que não combinam com a imponência que a casa, um dia, certamente ostentou; percebe-se um ar de desleixo. Ainda é possível perceber que se trata da famosa Casa Rosada. Não a argentina, mas a ardosiense. Longe de ser a sede do Poder Executivo do pequeno município, é a misteriosa residência de Nicolau, o velho que poucas pessoas já tiveram a oportunidade de conversar, recluso em sua propriedade. Conhecido como “o ermitão”, embora poucos saibam o significado, é visto com desconfiança por alguns e com medo por outros. As crianças, coitadas, sentem calafrios nas raras vezes em que Nicolau, o ermitão, aparece na rua.

Por isso mesmo, embora tenha alcançado a maioridade há alguns anos, Gil está receoso no trabalho que fará em parceria com Roni.

- Mano, cê não falou que era na casa do velho!

- Do jeito que tu é cagão, eu sabia que não viria. Vê se pode! Medo de um velho caquético que nem sai na rua!

Qual não foi a surpresa na marcenaria do Castor quando o proprietário percebeu que, dou outro lado da linha, era o ermitão ao telefone? “Bem, meu senhor, então quando fica pronta minha escrivaninha?”, a voz era pausada e grave. “Quinze dias... para o senhor eu deixo pronta em quinze dias”. Com o serviço pronto, coube a Roni a entrega, “E não tem quem te ajude, estamos atolados de serviço! Você que se vire, e tem que ser amanhã!”. Como se percebe, Gil foi escalado – mediante uma pequena gratificação – a auxiliar na entrega de uma escrivaninha em mogno.

O velho é esquisito. A casa, mal conservada. E a forte chuva que cai naquele dia não ajuda nada. O portão automático – uma das poucas modernidades permitidas naquele endereço – abre vagarosamente, em contraste às gotas que caem violentamente do céu. Os rapazes estacionam a caminhonete ao lado da porta de entrada, onde Nicolau os aguarda de pé, tal qual “estauta” de cera. Nada de sorrisos, o tom é sóbrio, acinzentado, como a chuva.

- Por gentileza, deixem o móvel em meu escritório, subindo as escadas à esquerda.

Ninguém, em qualquer hipótese, pode reclamar de sua educação.

- Sim senhor. – responderam em coro. – E não se preocupe, senhor – prosseguiu Roni –, vamos limpar os pingos de água que ficarem no caminho.

- Espero que sim.

Não se confunda educação com simpatia.

Ao deixarem a escrivaninha no escritório, uma saleta bagunçada repleta de livros, cadernos e papéis, após subir “sabeládeusquantos” degraus, Gil não resistiu:

- Putz, troço pesado, véio!

- Cala a boca! Quer que eu perca o emprego!

- Tô nem aí...

- Nossa, quanta tranqueira por aqui, hein? Tá bem fedido...

Dois quadros com o mapa-mundi representado – um atual e o outro com desenhos de sereias e baleias, em tons de sépia –, um aparelho de toca-discos apoiado sobre suas caixas de som, dois enormes estojos com diversos LP’s, a maioria de música brasileira, mas diversos com nomes em inglês ou espanhol. E muitos, muitos livros, cujas capas eram “sem graça”, “feias”, e as páginas, “amareladas”, “cheirando mofo”. Bisbilhotanto o quarto, porém, o item que mais chamou a atenção dos rapazes foi uma flâmula rota e rasgada da Seleção Argentina, da Copa de 78.

- Estranho mesmo... O cara é gringo? Sempre achei que era daqui.

- Num sei, do jeito que é doido, deve mesmo torcer pra outro país... mas tinha que ser pros argentinos?

- Ah! É bem a cara dele! Imagina alguém com tanto livro velho num mesmo quarto. Já tô sentindo minha renite estourando no nariz!

- E o nome deste aqui: “O Príncipe”, que coisa de boiola... Esse velho, não sei não... Tá cada vez pior... Ficar lendo história de criança!

- Você tá confundindo com o “Pequeno Príncipe”, animal! Esse aqui é outro.

- Putz! Será que ele é o autor? “Nicolau Maquiavel”!

- Você acha que o velho pode escrever alguma coisa? Esse Maquiavel morreu faz tempo, seu retardado!

- Tanto faz... Tô peidando e andando... Olha essa papelada toda! Escrita à mão!

Depois de uma breve conferida naquelas folhas, todas soltas...

- Mano, o título!

Os intrometidos ficaram intrigados.

“Ardósia: a saga de um povinho”.

Ofenderam-se.

- Velho filho-da-mãe.

Ficaram lendo os papéis aleatoriamente. Os fatos estão divididos em episódios.

- São histórias reais! Caraca, que maneiro! Ele sabe até aquele negócio que aconteceu com você no carnaval! Será que tem algum fofoqueiro que conta tudo pro ermitão?

Gil puxa a folha das mãos de Roni. Dá uma rápida lida e, chateado, rasga o papel. Episódio três. Cada um continuou lendo capítulos diferentes, entre intrigados e curiosos.

Gil teve um calafrio. A barriga gelou. “Olha isso, cara...”

E ficaram ambos lendo aquele papel.

“Episódio 23 : Premonições: A pintura daquele antigo sobrado está corroída pelo tempo, a cerca feita de pontiagudas lanças que margeia o terreno está enferrujada e, em alguns pontos, possui remendos que não combinam com a imponência que a casa, um dia, certamente ostentou; percebe-se um ar de desleixo. Ainda é possível perceber que se trata da famosa Casa Rosada. Não a argentina, mas a ardosiense.”

Gil comenta como aquilo “é assustador”, mas o colega parece compenetrado demais. Quem o visse naquele momento, até o acharia inteligente, com “cara de conteúdo”. De repente, a voz soturna surge da porta.

- Terminaram?

Desajeitados e inibidos, os dois arrumam os papéis que narram a saga ardosiense, colocando-os sobre a escrivaninha recém chegada. “Desculpe, senhor. Estávamos só arrumando um pouco para o senhor aproveitar o móvel novo!”.

O velho nada responde. Fica observando os dois saírem do escritório e descerem as escadas. Ao terminarem os degraus, Gil arrisca uma olhadela ao topo. O ermitão, imóvel, os observa. Não pode ser, mas o rapaz juraria ter percebido um leve sorriso no canto do rosto enrugado. Parecia até malicioso. Será...? Gil vai embora encafifado. Ao seu lado, Roni caminha tenso, sentando-se ao volante da caminhonete. Aciona o pára-brisas. Gil faz algum comentário; ele não ouve. Algo o incomoda. Assusta-o. É o que leu por último, nos papéis, antes do velho Nicolau interrompê-lo. Só teve tempo de ver o título.

“Episódio 24 : Assassinato em Ardósia”.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 21/08/2012
Código do texto: T3842606
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