ARDóSIA 22 : Quem ouviu?
Um dormitório enorme, no centro uma cama “king-size” emoldurada por elegante colcha azul celeste, detalhes em amarelo. Travesseiros que mais parecem almofadas. Na parede contrária, uma televisão de LCD permite assistir aos filmes noturnos pouco antes de cair no sono. Apenas 22 polegadas, pois a TV maior fica na sala. Nenhum guarda-roupa, as vestes estão acomodadas no “closet”, discreto na parte direita do cômodo. Para as crianças, mais dois quartos. Além do escritório, sala de jantar, sala de estar, copa, cozinha, hall (“mas onde fica isso?”), garagem para dois carros, quintal e piscina. Bem, piscina pode ser demais, mas ao menos uma churrasqueira!
Essa é a descrição que Laura e Téo fazem da casa dos sonhos, ou melhor, da residência que pretendem possuir em médio prazo (“talvez longo, querida, um taaaanto mais loooongo”, corrigiu Téo). Estão deitados na cama conversando, após a saída de Roni e Gil. Tia Ane Dota passou na casa de Laura e, naquele momento, terminava de preparar o jantar que a sobrinha iniciara. Quando Laura voltou ao quarto, Téo despachou os amigos. “Hora de curtir um pouco minha esposa, não acham?”. “Cara de sorte”, pensou Gil. E assim ficaram ambos, descansando abraçados sobre o leito daquele quarto que, no momento, resumia toda a “casa” que possuíam. O casal vive na residência dos pais de Laura e o único cômodo exclusivo é aquele: um quarto de três por três metros, abarrotado com uma cama de casal, um guarda-roupas (seis portas), uma TV de 14 polegadas sobre uma cômoda, uma cadeira e um pequeno “toca-CD” deixado no chão mesmo, ao lado do guarda-roupas. É o cantinho de Laura... e o pesadelo de Téo. Por isso debatiam como seria o futuro de sonhos. Laura sabe que, no fundo, tal sonho é um tanto exagerado; nenhum dos dois ganha salário compatível com o imaginado. Mas certamente podem conseguir algo melhor – “muito melhor!” – que aquilo. Só precisavam enfiar a cara num financiamento... para terror ainda maior de Téo.
Percebendo o tremor no cabelo desgrenhado do marido, Laura começa a acarinhá-lo, selinho aqui, afago ali e em poucos segundos beijam-se. Coxas entrelaçadas, mãos passeando pelos corpos e roupas atiradas ao chão. Sem maiores detalhes, que esta é uma série familiar. Há crianças lendo. Infelizmente, porém, alguns gemidos e “sussurros” saíram mais altos que o desejado. Por causa do desejo, aliás. “Desejo” que é eufemismo para “um puta tesão”.
Três batidas na porta. Três socos.
- O jantar está na mesa, meninos!
A voz gutural de “seu” Dota, pai de Laura, paralisou o casal de pombos no cio. Literalmente. Pareciam uma só estátua. Quando a câimbra passou a fazer-se sentir (pensam que é fácil ficar naquela posição?), os dois lentamente deitaram na cama, ofegantes, olhos arregalados mirando um ao outro. Laura teve coragem de perguntar...
- Será que ouviram alguma coisa?
- Sei lá... Acho que não. Não gritamos nada. É só hora de jantar.
Vestiram-se rapidamente e rumaram à cozinha. Jantariam ali, não havia copa; não era o endereço dos sonhos.
Apesar de tentar tranqüilizar a esposa, Téo duvidava que ninguém tivesse ouvido. E isso deixou seu corpo gelado. Mas, enfim, havia uma chance de terem passado desapercebidos. Na cozinha, reparou no rosto de cada um. O sogro estava com cara de bravo. Como sempre. O semblante da sogra era de indiferença. Como sempre. O pequeno cunhado parecia cansado, como quem reclama da vida, de tudo... Como sempre. Então veio a tia Ane Dota. Normalmente séria, filosofal, olhos de quem decifra os enigmas do mundo; mas agora estava diferente, um leve sorriso no rosto, meio... meio... safado, confidente. “F@#*%”, conclui Téo.
Ele preferiu não conversar muito, tateava em terreno perigoso, qualquer palavra mal interpretada e não escaparia ileso. Serviu-se do que estava à mão. Arroz, feijãozinho e carne de panela. Havia alguns quitutes diferentes – coisas de tia Ane – mas preferiu ficar com o tradicional, “Tô sem fome”. Evitou encarar o pai de Laura, também quieto. A mãe é quem conversava, puxava papo, seguida pelo irmão mais novo de Laura, inclusive contando piadas idiotas sobre loiras ingênuas. Laura, por sua vez, acreditava piamente que ninguém ouvira nada; afinal, nenhum comentário, ainda que indireto, sobre o assunto. Estava animada, pensando nos planos de uma nova casa; poderia convencer Téo a fazer uma dívida planejada! Então pediu:
- Pai, quero mais quibe! O maior!
A terra tremeu.
Tá certo, não foi a terra, mas a mesa toda balançou com o murro do “seu” Dota. Percebendo o exagero da reação, o velho homem – com movimentos lentos e duros – garfeou um dos quibes (não o maior) e o passou para Laura, atônita em sua ingenuidade. Téo encarou o sogro, não tinha como escapar. Recebeu de volta o olhar frio, os dentes cerrados e a mão firme, fechada, o quibe preso ao garfo.
Pensando bem, o financiamento... No dia seguinte, Téo vai ao banco.