DO OUTRO LADO DA RUA (19) –  NOIVA NEGOCIADA POR TOURO
 
           Estamos no quintal daquela velha casa de fundos, do outro lado da rua, junto à horta de ervas que minha boa velhinha cuida com tanto amor. Ela colhe um ramo de alecrim para seu carinhoso benzimento. Espargindo a erva em meu corpo, vai rezando sua habitual Ave Maria e Pai Nosso, por três vezes.
          Voltamos à cozinha após aquele ritual e, mais uma vez sorvendo o café fresquinho com bolinhos de chuva, sentadas ao pé do fogão de lenha, dona Chiquinha narra mais uma de suas lembranças, da saudosa fazenda Engenho Novo.
           Foi lá pelos idos de 1900, coronel Porfírio tinha um irmão de nome Amaro, o mesmo do caso “Visita de Tio Amaro”, boiadeiro que vivia pras bandas de Goiás. Aventureiro, gostava de beber, fumar, namorar, cantar, improvisar repentes: achava que tudo podia ser feito, desde que não prejudicasse ninguém. Era amigo leal de quem o recepcionasse e mantivesse com ele laços de amizade sincera.
          Uma tardinha, proseando no terreiro com seu amigo Leocádio, dono da fazenda Matão do Brejo, que nos tempos de vaca gorda costumava fazer negócios com tio Amaro, um caboclo de pé rachado, daqueles vivido só no sertão, sem estudo, ignorante mesmo, só sabia mexer com a terra e com as poucas vacas que possuia.
          A prosa levou os dois para um assunto que deixou Tio Amaro de orelha em pé:
         ___A terra tá fraca...tem seca só... o gado tá morreno... acho que nóis vai vendê tudo pruquê dá pra vivê anssim não, num tem toro pra fazê as vaca prenhá...o leite tá acabano. Si a genti arrumasse um toro...quem sabi as coisa miorassi...
          A prosa estava ficando já adiantada dentro da noite, o café era servido sempre que acabava, pela filha de Leocádio. Elisa era uma moça nova em seus 16 anos, morena vistosa, olhava vez ou outra pra tio Amaro, quando ia servir o café. Leocádio percebeu aqueles olhares, pois Tio Amaro, em seus 36 anos, homem vivido com relação à mulher, não arredava os olhos da moça.
          ___Ocê mim disse qui tem um toro que tá quereno vendê né Amaro? Vamo fazê um trato amigo? Ti dô minha fia Elisa em troca du toro... Cê casa cum ela, anssim vai sê uma boca a menos pra cumê e o toro vai prenhá minhas vaca, pra dá mais leite pros piqueno.
          Foi assim que tio Amaro se casou com Elisa, em troca de um touro, no trato feito com o pai da moça. Elisa se tornou uma mulher forte, tanto no físico como no caráter, mãe dedicada, trabalhadeira que só ela, tirava leite, fazia queijo, tacho de pamonha e comida para os 12 filhos que pariu e, pra quem mais chegasse. Uma mulher cheia de vida, uma Elisa que em sua simplicidade e bondade todos amavam e que em seu 13º parto, ainda nova nos seus 38 anos de idade, morreu. Morreu a Elisa que fora trocada em sua tenra idade por um touro e por homens ignorantes, que não sabiam o valor de "gente" , deixando neste mundo 13 filhos ao Deus dará.
          Tio Amaro, como todos sabem, morreu pisoteado por um cavalo bravo, quando era ainda um homem forte, levando consigo o legado de vida aventureira de boiadeiro.         
          Encerra-se assim o relato da boa velhinha dona Chiquinha, que conheceu tio Amaro quando este viera visitar o irmão, naquele fatídico dia da “Visita de Tio Amaro”.


Moly
Enviado por Moly em 20/08/2012
Reeditado em 29/08/2012
Código do texto: T3839542
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