ARDóSIA 20 : Mais nomes

Quinta-feira, Corpus Christi, garoa fina. O feriado em Ardósia segue as tradições das interioranas cidades tupiniquins. Na principal avenida, Sapetuba, tapetes com imagens religiosas cobriam o asfalto, feitos com serragem, sal grosso, pedaços de garrafas plásticas e materiais recicláveis. Famílias inteiras saem para registrar beleza e criatividade em obras viárias, através de máquinas fotográficas e celulares. Nem todo mundo, claro, gosta. Evandra preferia ficar em seu “estabelecimento comercial”, o boteco onde atuava como gerente, garçonete, balconista, administradora, caixa e o que mais fosse necessário. Principalmente em dias como esse, quando marido e filhos insistem em passear.

- Vamo lá, Eva... fecha a birosca um dia pelo menos. Hoje é data sagrada, pelamordedeus! – insistiu o desanimado esposo Jesuíno.

- Mas hoje é que dá movimento, animal!

- Ah, mãe! Tem cada tapete bonito. Vamos ver! – tentaram a espivetada Idônea e o pacato Ilícito.

- Depois eu vejo as fotos. E por que você vai com esse paletó, homem?

- Puxa, tô bonito, né? Faz tempo que quero usar, ainda tá novo, e como hoje tá friozinho...

- Tá é ridículo, ainda bem que não vou!

E nesse clima familiar, partiram Jesuíno, Ilícito e Idônea. Av. Sapetuba repleta de gente, os ardosienses aproveitam para rever velhos amigos, cobrar dívidas esquecidas e paquerar em olhares furtivos. Jesuíno coloca o papo em dia com fregueses/colegas, enquanto as crianças se enroscam no meio da multidão. Ele, porém, não perde ambos de vista. “Não vão longe, não! Devagar, que o pai vai atrás!”. O que ele gosta mesmo é de admirar a decoração do asfalto. Homem de família, católico praticante, emociona-se com imagens mais trabalhadas, principalmente envolvendo Jesus crucificado. Quaisquer sinais vermelhos simbolizando o santo sangue provocam-lhe inevitáveis lágrimas. Coisa pouca, quase ninguém percebe... pode ser religioso, mas é macho!

Equilibrando-se entre a masculinidade e a ternura – difícil conciliá-las em seu mundo – Jesuíno prossegue sua jornada, um olho nos tapetes outro nos filhos, que fotografam cada detalhe. A intenção dos pimpolhos é fazer a mãe arrepender-se de faltar ao passeio. Jovens e ingênuos, desconhecem o duro coração da genitora. O pai, entretanto, segue pela avenida, cumprimentando amigos, admirando cada imagem. Defronte um enorme rosto de Cristo melancolicamente sorrindo, com a tradicional coroa de espinhos em sua cabeça, Jesuíno percebe uma mulher sozinha, chorando baixinho. De meia idade, ela tem – assim como a imagem do Salvador – uma beleza tristonha. Ao contrário da maioria dos presentes, ninguém a acompanha, não tira fotografias e nem parece admirar os tapetes. Apenas chora. Empiedado, Jesuíno puxa conversa.

- Essas imagens também me dão uma tristeza... pensar que ele sofreu tanto pela gente.

A mulher enxuga as lágrimas do canto dos olhos e dá um sorriso.

- É verdade... mas esses tapetes sempre me deram tanta alegria... Meu marido os amava! Sorria lindamente a cada Corpus Christi!

- Ele não veio hoje?

- Eu o perdi há dois meses...

O homem ficou olhando para sua face, enternecido. Às favas com a macheza, frente uma viúva chorando a perda do marido, relembrando momentos felizes junto à imagem de Nosso Senhor.

- Desculpe.

- Não tem problema. O senhor não sabia... foi até gentil em questionar o motivo de minhas lágrimas. A maioria passa indiferente... Mas eu compreendo, famílias completas imersas em sua felicidade.

Jesuíno quase entendeu tudo o que ela dissera. Era bonito. De repente chegam correndo os enciumados Ilícito e Idônea, e cada um segura uma mão do pai.

- Que lindos! Seus filhos?

- São... uma belezinha, né? Um muito gordo... outra parece um palito de tão magra... mas afinal são meus filhos, que coisa!

Ela sorriu. Cândida e lindamente.

- Pai, vamos logo que a mãe quer ver as fotos!

- Sua esposa não pôde vir?

- Ela ficou no boteco... quédizê, no estabelecimento comercial que a gente tem.

- Puxa, mas hoje é dia santo...

- Alguém tem que botar dinheiro em casa, né? A gente não vêve de vento, não!

- Não responde assim, Idônea! A dona não falou por mal.

- Desculpe, ela tem razão. Eu nem deveria fazer esse tipo de comentário. Além do mais, o movimento hoje deve ser ótimo para o comércio!

Jesuíno apenas sorriu. Tentou devolver o sorriso com a mesma candura. Ficou na tentativa, e emendou:

- Bom, vou indo. Foi um prazer, espero que a senhora fique mais animadinha!

- Pode deixar! Também vou procurar meus filhos, são duas preciosidades, como os seus! Desejo-lhe felicidades... e mande um abraço à sua senhora. Agora vou correr atrás dos meus.

- Como chamam?

- Cateto e Hipotenusa.

Não era certo. Aquela mulher recém enviuvara. E a sua estava trabalhando em pleno feriado; sem contar que a fidelidade é um dos pilares da família! Mas Jesuíno quase se apaixona novamente.

Nichollas AIberto
Enviado por Nichollas AIberto em 20/08/2012
Código do texto: T3839126
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