ARDóSIA 17 : Disparos no peito
Com o saco na lua. Era assim que Jonas se sentia há tempos. Um filho pra pagar pensão alimentícia; uma esposa pra ser chifrado; um emprego trás outro a ser perdido; um time do coração pra dar desgosto todo ano. A vida era cruel, mas decidiu dar o troco, e não seria em notas pequenas. Faria algo grande. Hoje. Dali a alguns segundo... caso tivesse coragem, claro. E terá! Não podia, mais uma vez – outra vez! – acovardar-se.
Após uma juventude romântica, acreditando no idealismo das convicções políticas, na honra de um compromisso apalavrado e no amor jurado olho no olho, a experiência mostrou-lhe que carinho e ética são bonitos em filmes da televisão. E só; em casa, na rua, o que vale é a lei do mais esperto. A verdade, nua e crua, é ser amor supervalorizado, pois ele faz é mal à alma. A sua, bem como seu coração e todo seu corpo, foram de Maria Cristina para, depois, descobrir uma sequência patética de traições, colocando em dúvida inclusive a paternidade de seu pequeno João Pedro. Chifrado, sem emprego e quase preso por atraso na pensão. Hoje pela manhã saiu de casa determinado, com sua melhor calça, uma camisa com gola “de playboy” e gel no cabelo. Hoje é o dia da caça.
A estação do Jabaquara não era o local mais indicado para um assalto. Se Jonas não estivesse atordoado com os acontecimentos, teria se dado conta. Caminhando a esmo há quase duas horas, decidiu que o assalto planejado seria no metrô. Alguns seguranças próximos às bilheterias o fizeram mudar de ideia, mas a lanchonete que estava no outro ponto da estação não parecia assim tão segura.
Caminha a passos lentos.
Para próximo ao balcão, finge que confere os preços dos salgados. A testa sua; cruza os braços para impedir a tremedeira das mãos. Olha ao redor, poucos clientes, nenhum segurança. De repente, dois rapazes começam um bate-boca, cuja intensidade vai aumentando até surgirem os primeiros sopapos. Forma-se uma pequena plateia até a chegada dos seguranças, surgidos do nada. “Puxa, mas de onde vieram? Apareceram rápido, desgraçados!”. Os agentes levam os brigões para fora da estação, “quem sabe até uma Delegacia; não deve haver outros por ali”. É sua chance; aproxima-se do caixa. Saca a arma. Chegou a hora.
- Passa todo o dinheiro, porra!
A moça atrás da caixa registradora solta um grito curto e seco. Os poucos clientes sentados no balcão ficam estáticos, excetuando o careca que se joga ao chão. Um casal, de pé próximo ao balcão, permanece imóvel, paralisado pela ação do mais novo criminoso paulista. O casal em questão, claro, atende por Téo e Laura. No local errado, na hora errada. Passar a lua de mel em Ardósia já não parecia uma ideia tão ruim.
- Ninguém se mexe, caralho!
A ordem de Jonas surgiu porque uma mulher do balcão gesticula e balbucia, chorando, que aquilo não podia acontecer com ela.
- Dá o dinheiro logo!
A moça do caixa se atrapalha, as mãos trêmulas não conseguem colocar em prática as ações que a mente determina. De repente, ouve-se o ruído de botas correndo e quatro policiais militares descem em desabalada carreira as largas escadas que desembocam na lanchonete.
Téo e Laura observam a tudo imobilizados, olhos arregalados pelo terror. Jonas desacredita na chegada dos fardados. “Cacete! Será que estavam aí ao lado me esperando?”. Não, apenas policiais em patrulhamento de rotina – há um posto da PM nas proximidades da estação. Jonas não avaliara os arredores? Até pra fazer a coisa errada existe o jeito certo!
Apavorado, Jonas corre três passos e agarra pelo braço a moça do casal – Laura. Em seguida, num gesto instintivo, Téo tenta retomá-la para si. Num vai e vem que deixa parecendo a jovem ardosiense uma boneca, ela acaba presa entre os dois homens. O ladrão segura a refém pela mão, mas entre ambos está o namorado da garota. Há ainda outro empecilho, entre o roubador e o galã, um revólver apontado para o peito do segundo. No raciocínio de Jonas, uma mulher refém é muito mais eficaz. Se for um casal, melhor ainda, mas a postura daquele homem dificulta as coisas, não lhe permitindo a Jonas o controle sobre os dois.
Os policiais – com todo o treinamento e perícia que lhes são peculiares - apontam as armas ao criminoso, ordenando que abaixe o revólver e se entregue sem criar mais problemas. A essa altura, os clientes no balcão já saíram correndo, com exceção da mulher que antes gesticulava, agora desmaiada.
- Você tá atrapalhando tudo, mano! Solta a mina e me deixa ir embora com ela – ordenou Jonas, nervoso.
- Sem chance, amigo. Não largo dela de jeito nenhum – retrucou Téo, com assustadora serenidade.
- Não vai sair?
O revólver é colocado mais próximo, indicando possível disparo. Téo, porém, não se mexe, apenas fixa os olhos em seu rival.
- Que pena, vou ter que te matar.
- Então mata.
- Cê não acha que tô bem pertinho pra errar teu coração?
- Sei que vai acertar. Mas você não coloca um dedo na mulher que amo.
Os olhares fixos permaneceram alguns segundos... Então Jonas percebe que há, sim, esperança num mundo melhor. Alguém, comprovadamente, se deixaria matar para salvar, não a vida de um filho ou de uma mãe, mas da garota que ama. Ainda havia pessoas em quem confiar, pois não movidas apenas por interesses menores, mas sentimentos sinceros. E isso em São Paulo! Na verdade, era em Ardósia, mas Jonas ainda não sabia disso. Na verdade... nem viria a saber. Nesse curto instante em que renovou sua fé no homem, soltou a mão de Laura e abaixou o revólver, então já encostado no peito de Téo. O passo seguinte foram dois tiros em seu tórax.
A polícia socorre o casal e aciona uma ambulância para o criminoso que agoniza no chão. Laura chora abraçada com Téo, que treme. Apesar de tudo, é um herói. A calça tá mijada, mas ainda assim um herói.