ARDóSIA 16 : Téo está tenso
As luzes de Nova Iorque. A torre de Paris. O relógio de Londres. O sonho de Laura sempre foi passear por cartões postais, especialmente numa lua de mel. Descapitalizado, o melhor que Téo conseguiu oferecer foi a casa em Santos: uma semana a apenas dois quarteirões da praia. Bem, se não era cinematográfico, ao menos era preferível a ficar observando a estranha arquitetura da Casa Rosada, o “ponto turístico” de Ardósia, onde vive Nicolau, o ermitão. Figura pitoresca da pequena cidade, sempre recluso, atraía a curiosidade das pessoas, ainda que contra a vontade. Mas enfim, a lua de mel de Téo e Laura será na Praia da Enseada, Santos.
Neste exato momento, o casal está – carregado com duas mochilas e dois bolsões – no metrô de São Paulo, transitando entre as estações Tietê (cujos arredores da rodoviária recepcionam os viajantes ardosienses) e Jabaquara (de onde partem os turistas rumo ao litoral santista). Laura dorme no ombro do marido, ambos sentados num dos bancos do vagão.
Téo está tenso. É sua estréia fora das fronteiras ardosienses e não imaginava tipos tão estranhos na capital. Via pela TV figuras exóticas, mas tê-las ali, a poucos metros, era sinistro. Assustador definiria melhor. Observa duas garotas ao lado de uma das portas do trem, cujas roupas possuem mais cores que uma escola de samba carioca – e com muito menos harmonia. Verde, roxo, azul e vermelho, em tons fortes, misturam-se entre blusas, cachecóis (“num calor desses!”), calças e (“pelamordedeus”) shorts sobre as calças. Téo cutuca a esposa.
- Desculpa... babei em teu ombro?
- Olha só essas duas, amor. O mundo tá perdido!
- Ô caipirão! Não vai fazer eu passar vergonha aqui em São Paulo, né?
- Sai assim na rua e você toma uma na orelha!
- Encosta a mão em mim pra você ver!
- Não grita... E olha só aqueles dois... de mãos dadas!!
- Um casal. Que bonitinhos...
- São homens! Quero dizer, aposto que as mães pensam que são!
- Caipirão e machista?
- Não dá mesmo pra sair de Ardósia. A gente não vê disso lá.
- Tá lôco? Nunca viu o filho da dona Mercês?
- Tá brincando?
- Tu é cego mesmo... E quer saber? Eu não colocaria a mão no fogo pelo Gil.
- Agora não! Meus amigos não!
- Cê tem certeza que nunca brincou de médico com o Gil e o Roni?
Quando Téo estava prestes a perder o bom humor, o trem chegou ao Jabaquara. Decidiram forrar o estômago na lanchonete da rodoviária. Toda aquela discussão visual despertara-lhes a fome. Antes mesmo de se sentarem, dois homens discutem violentamente próximo ao caixa; alguma coisa a respeito da esposa de um deles, ou o dinheiro de outro... não está claro. Logo se esbofeteiam, sendo necessária a intervenção de seguranças da rodoviária. Palavrões, quedas e um pouco de sangue. A violência real – mesmo sem as explosões pirotécnicas do cinema – choca muito mais a alma ardosiense.
Téo está atônito. Pensa em voltar pra casa, mas Laura não deixará de passar a lua de mel na praia “nem que vá sozinha e tenha eu mesma que meter a mão na cara de dois ou três!”.
Os olhos de sua esposa misturam medo e raiva. Ninguém vai estragar seu casamento, após tantas desventuras! Por ali, as pessoas vão, aos poucos, retomando suas conversas, como se aquela briga fosse algo prosaico e irrelevante em nosso cotidiano.
Téo está pensativo. “Pois é... e assim vamos caminhando rumo ao apocalipse”. Percebe que apenas um rapaz, gel no cabelo e camisa pólo dentro da calça de sarja, observa com mais atenção a saída dos seguranças com os brigões. “Ainda há, mesmo por aqui, quem tenha um pouco de sentimentos”. Inviável viver assim, como se fôssemos completos desconhecidos lutando pelo mesmo espaço, sem escrúpulos em relação ao próximo. Próximo que pode ser seu vizinho, o pai de um amigo, o agricultor que planta o arroz de seu prato.
Téo está decidido. Dará mais valor aos pacatos amigos e às figuras ardosienses que, pelo visto, não eram assim tão estranhas. Nesse exato momento, o rapaz de cabelo engomadinho aproxima-se do caixa, saca uma arma da cintura e anuncia o assalto.
Téo está f* e mal pago. Agora precisa sair dali vivo.