ARDóSIA 13 : Poema molhado
Naquela quarta-feira, final de tarde chuvosa, mais um ônibus prepara sua partida de Ardósia rumo à capital. Sempre que um filho dessas terras vai aventurar-se em outras plagas, famílias inteiras reúnem-se na acanhada rodoviária. Agora, é a vez dos Dota despedirem-se da jovem Laura. Noivado destruído, está decidida a cursar faculdade e buscar melhor sorte na enorme Paulicéia. Em seu peito há um tanto de medo, outro de excitação... e o maior sentimento é tristeza. Não pelo fato de deixar os pais, o irmão ou mesmo a impagável tia Ane, sequer os queridos amigos, que lhe prepararam aquela festa. Poucas vezes tantas pessoas reuniram-se na despedida de um ardosiense, criando um tumulto incomum. Para completar a confusão, na quadra ao lado comemora-se o aniversário da maior loja de eletrodomésticos da cidade, com direito a música ao vivo, sob o comando da dupla sertaneja Toni & Ramos. O nome foi sugerido pelo empresário, pois são ambos barbudos e, principalmente, peludos.
Bem, o assunto é a tristeza de Laura... cujo motivo não está em deixar os pais, familiares ou amigos... mas em colocar definitivo ponto final numa história cujo destino fora imaginado tantas vezes... e sempre tão diferente deste!
Enfim. Agora está ali, em meio a malas e guarda-chuvas, observando estacionar na plataforma o ônibus que a levará à nova vida. A mãe chora; o pai segura as lágrimas, embora mal consiga pronunciar qualquer palavra.
- Vou ligar sempre, não se preocupem. Saberão de cada passo meu na capital.
“Isso é o que eles pensam. Até parece que vai contar as barbaridades que aprontar por lá”, pensa a ranzinza faxineira da rodoviária, que não tem mais paciência para patéticas cenas de “chororô” quando os coletivos partem. Laura, em sua doce simpatia, abraça cada amigo ou familiar que compareceu, dando especial afeição à tia Ane, símbolo da família Dota, aos pais e ao irmão, cinco anos mais novo e que quase não consege largá-la no abraço.
Em seguida está Laura no ônibus. Sentada em poltrona junto à janela, é vista num triste enquadramento por causa da chuva, que deixa lágrimas escorrendo pelo vidro. O clima de despedida é marcado ainda pela música que chega dos vizinhos, com histórias sertanejas de amores mal resolvidos. Enquanto outros personagens sobem ao coletivo, Laura acena e sorri. Os amigos estão agrupados no meio da rua, desejando-lhe boa sorte, sucesso e o que sempre se deseja nesses momentos. Ao fundo, está a multidão que assiste à dupla “dor-de-cotovelo”. De repente, Laura tem a respiração suspensa e os olhos paralisados: do meio do povo que canta sem parar, um vulto sai, completamente molhado. Caminha decidido em direção ao ônibus. É Téo. Ela não sabe o que pensar. O rapaz passa ao lado da família Dota e o caçula precisa ser contido pelo pai. “Deixa eu dar uns cascudos nesse fêlodeumacabra!”.
Téo para ao lado da janela que emoldura o rosto da ex-noiva. Fitam-se mutuamente.
- Fica!
Laura não responde.
- Não vai!
Laura vira o rosto.
E agora? Que pensar? Havia sonhos e planos, que foram destruídos com o fim do noivado. Novos sonhos e planos foram construídos a partir das cinzas... poderiam ser novamente substituídos? Haveria chance de reviver aquele relacionamento? De rabo de olho, Laura olha o ex-amor.
- Por favor... – Téo levanta uma rosa vermelha, até então despercebida na mão direita. A flor está quase destruída pela chuva, mas é rosa. E vermelha.
“Ingênuo enleio de surpresa,
Sutil afago em meus sentidos,
Foi para mim tua beleza,
A tua voz nos meus ouvidos.”
É Téo gritando, em meio a familiares, amigos e curiosos, para Laura.
“Ao pé de ti, do mal antigo
Meu triste ser convalesceu.
Então me fiz teu grande amigo,
E teu afeto se me deu.”
Téo titubeia... como era o resto? Olha para a palma da mão esquerda. Escrevera os versos ali caso desse um “branco”, mas a chuva deixara a letra – que já era ruim – quase imperceptível. Seu rosto queima, percebendo os olhares ao redor. Prossegue:
“Mas o teu corpo tinha a graça
Das aves... Mudical adejo...
Vela no mar que freme e passa...
E assim nasceu o meu desejo.”
As palavras são difíceis, mas um momento destes precisa de algo radical. O amor pode ser radical. E perigoso. O pai Dota soltou o filho ao ouvir o último verso com “nasceu o meu desejo”, só que o garoto não está mais raivoso. Observa o desfecho da cena.
“Depois, momento por momento,
Eu conheci teu coração.
E se mudou meu sentimento
Em doce e grave adoração.”
A ranzinza faxineira, apoiada na vassoura, limpa as lágrimas que escorrem do rosto. A plateia está, em sua maioria, com sorrisos bobos e/ou olhos marejados. O novo Romeu tem o coração pulando pela boca. A chegada inesperada... a rosa... o poema... a declaração em frente de todos... Suas armas são essas, não há mais cartas na manga. O rosto de Laura segue inerte, olhando apenas a poltrona à sua frente. Se o pobre rapaz tivesse ângulo, perceberia quão vermelhos estão os olhos da garota; não se daria conta, porém, do quanto lhe era difícil respirar, segurando o choro que teimava em saltar-lhe dos pulmões à boca. Jamais tudo estivera tão claro na mente de Laura, nunca tivera tanta certeza do que é felicidade. Não adianta buscá-la em São Paulo, não há motivos para alterar planos amadurecidos desde a adolescência.
O sentimento que enche seu peito não lhe permite perceber que o ônibus caminha os primeiros metros. Os demais passageiros, atônitos, não sabem se pedem ao motorista que pare ou fazem a garota pular pela janela. Ficam quietos, afinal é dela a decisão. E ela permanece imóvel. Após dar a ré afastando-se da plataforma, o coletivo parte rumo à capital bandeirante.
Depois de um metro, porém, um estrondo faz o veículo parar bruscamente. O motorista, desesperado, grita que um doido se jogou na frente, e desce correndo para ver o estado daquela insólita vítima de atropelamento. Atrás dele vem Laura, chorando, desesperada ao ver o corpo de Téo estendido no solo, em frente ao enorme coletivo.
- Téo!! Amor! Fala comigo!
O suicida tem a testa ferida e alguns arranhões pelo corpo. Abre os olhos lentamente. Vê Laura sobre si e uma multidão ao redor. O motorista, irritado, ralha:
- Você é idiota? Nada é motivo para se matar!
- Que lindo... quis se matar por amor... – comenta tia Ane.
- Me matar? Eu só queria parar o ônibus...
Téo franze a testa.
- Babaca... – sussurra Laura, sorrindo.
* OBS: O poema recitado por Téo é “Ingênuo Enleio”, de Manuel Bandeira.